Título: "A ação de inconstitucionalidade revolucionou nosso direito"
Autor: Márcio Chaer
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/03/2006, Nacional, p. A14

Para o mais antigo ministro do STF, a Adin é uma conquista de um tribunal que vive profundas mudanças

Nos últimos meses, o Supremo Tribunal Federal (STF) aprovou decisões que desafiaram o Congresso, o Palácio do Planalto e a opinião pública. Mas o principal combate que o STF trava, no momento, é com sua própria jurisprudência. Em uma revolução mais ou menos silenciosa, a doutrina da corte está em transição.

Não, como muitos esperavam, na direção de apoio aos interesses do governo Lula - já que o atual presidente nomeou 5 dos 11 ministros e poderá nomear ainda mais dois. Esse temor, na verdade, esvaziou-se por falta de evidências que o confirmassem. A mudança em curso, bem mais profunda, não ocorre porque os novos ministros sejam indicados por Lula, mas, simplesmente, porque são novos.

Regras petrificadas, e questionáveis, podem sofrer, em breve, importantes reviravoltas. Por exemplo, a que manda para a cadeia o cidadão que comprou um carro e tornou-se inadimplente. Outra, a exigência de prisão de um contribuinte enquanto ele ainda apela da sentença. Ou, ainda, toda a coleção de arbitrariedades praticadas pelo poder público contra o contribuinte. Vôo mais alto poderá acontecer com o mandado de injunção, instrumento criado para cobrir a omissão do Congresso nas ocasiões em que, por falta de regulamentação, um direito previsto na Constituição não puder ser exercido.

Nomeado pelo primeiro governo civil pós-militar, José Paulo Sepúlveda Pertence é hoje o decano, o mais antigo ministro do STF. Só recentemente, porém, ele conseguiu maioria para derrubar a regra que permitia instaurar-se ação penal contra contribuinte que ainda discutia um suposto débito. Outro avanço que ele pilotou foi o reconhecimento da legitimidade das centrais sindicais para questionar a constitucionalidade de leis e atos junto ao Supremo.

Na entrevista que se segue - primeira de uma série com ministros do Supremo, feita pelo site Consultor Jurídico (www.conjur.com.br) para o Estado - Sepúlveda Pertence analisa essa fase de mudanças no principal tribunal do País e, entre outros temas, o que lhe parece o principal instrumento da nova era judiciária do País: a ação direta de inconstitucionalidade (Adin).

O que mudou nestes 16 anos no Supremo?

Em primeiro lugar, mudou o País. Houve um evidente aprofundamento do sentimento de cidadania, o cidadão passou a acompanhar as grandes questões nacionais. O protagonismo do Supremo é outro, em relação ao Supremo pré-88. A ação direta de inconstitucionalidade significou uma revolução para o nosso direito. No plano teórico, a grande revolução não começou em 1988, mas em 1965, quando a velha representação interventiva passa a crivar a constitucionalidade não só de leis e atos de governos locais, mas também de leis federais.

O Supremo fazia no início uma leitura restrita da ação direta de inconstitucionalidade, diminuía seu papel e extensão.

Sim. Faltava legitimação. Praticou-se muito o que o nosso (ministro) Gilmar Mendes definiu como uma "jurisprudência defensiva", que era de restringir ao máximo o risco de que a ação direta fosse fazer naufragar o tribunal pelo seu número. Cito um entendimento com o qual jamais me conformei - e que só foi vencido agora, com essa composição pós 2003 -, que é o não reconhecimento da legitimação do que se chamava, então, de associações de associações de classes. Não se reconheciam então as centrais sindicais, assim como uma série de outras entidades de segundo grau, como congregações de entidades estaduais.

O Congresso nunca achou necessário obedecer às leis que ele mesmo aprova. Nas CPIs, por exemplo, convocam-se pessoas acusadas, para depor como se fossem testemunhas. O Supremo, de forma ousada, passou a enquadrar os congressistas. O Judiciário brasileiro "curou-se" da atrofia histórica que sempre o diminuiu diante de um Executivo hipertrofiado?

Sim. Eu creio que, nesse ponto, o Supremo não pode, mesmo em termos de direito comparado, ser tido como tímido. Pelo contrário, avançou-se, menos em termos de lógica jurídica pura e mais de sensibilidade para fixar em quais limites um tribunal pode ingressar no processo das atividades do Legislativo. Seja o processo legislativo propriamente dito, seja esse campo delicado em que se transformaram as Comissões Parlamentares de Inquérito. Neste caso, foi um contraponto necessário à afirmação dos poderes de instrução judiciária que a Constituição deu às CPIs. Impor os mesmos limites a que está sujeita a autoridade judiciária - entre eles, o mais elementar , que é a garantia de que ninguém é obrigado a fazer a prova contra si mesmo.

O Supremo julga mais os princípios ou mais as pessoas?

Há o julgamento de pessoas, que é esta pesadíssima competência penal originária. Mas a função do tribunal é trabalhar mais sobre princípios. E espero que isso possa aprofundar-se, sobretudo com a prática que se venha estabelecer - não é coisa mais para mim - da Repercussão Geral (mecanismo que permitiria que os ministros do STF escolhessem as matérias que devem julgar).

Vigora no País a noção de que as pessoas de quem não se gosta devem ser condenadas por qualquer coisa, e as de quem se gosta devem ser absolvidas automaticamente. Como é ser juiz nesse contexto?

Isso é muito bom, muito gostoso, mas aqui não dá. Eu costumo repetir muito uma frase: "Algumas das garantias da liberdade mais caras foram afirmadas a propósito de cidadãos não muito respeitáveis."

O País tem um sistema de comunicação voltado, basicamente, para uma população pouco informada. Para alcançar o maior número de pessoas, a imprensa procura simplificar. Recentemente, o senhor não participou de julgamento em que se debatia se é direito da defesa falar após a acusação. Foi acusado de, com isso, favorecer o ex-deputado José Dirceu.

Se fosse afirmado para um assassino, ninguém nem tomaria conhecimento.

Como é conviver com isso? Decidir uma coisa e ler, no dia seguinte, que o senhor decidiu outra...

É extremamente difícil. Diariamente é difícil, e muito mais quando você sofre o que é o pior tipo de agressão da imprensa: aquela que não afirma nada, só insinua. Insinuaram doenças, envolveram relações de amizade com determinado advogado, sem afirmar coisa alguma, o pior é isso.

Como o senhor vê a legitimidade do Supremo perante a sociedade?

Esse é um ponto central e eternamente inconcluso nas discussões sobre a justiça constitucional. Em que medida 11 homens podem dizer que anulam uma emenda constitucional? Mas eu creio que o poder das cortes supremas, particularmente das cortes constitucionais, é o que se tem chamado um poder essencialmente contramajoritário. Trata-se de garantir a Constituição com princípios fundamentais da convivência de interesses e de garantias. É sobretudo a garantia da minoria, de respeito às regras do jogo.

O ministro do Supremo deve se preocupar tanto com a governabilidade quanto com a constitucionalidade?

É inevitável na formação da convicção do juiz, do juiz constitucional sobretudo, uma certa lógica de conseqüências, mas para mim ela é secundária. O nosso papel é garantir princípios e regras de processo democrático que se puseram acima das maiorias conjunturais. Os governos reclamam, jogam com a lógica de resultado. Não é da lógica do governante preocupar-se com uma "regrinha" aqui, um princípio ali. A nossa lógica é outra. O nosso papel, como disse, é contramajoritário. Preservando o que é, nas regras do jogo democrático, na garantia da minoria e da eventual alternância do poder.

Há uma discussão sobre os limites que se pode impor à imprensa e sobre o caráter da liberdade de expressão - se é ou não direito absoluto. Afinal, a censura prévia foi ou não raspada da Constituição?

Como censura prévia, sim, mas me pergunto se a proteção da honra, da imagem que a Constituição diz inviolável, essa inviolabilidade se resume... ao pagamento de uma indenização.

Se um juiz tem conhecimento de que a honra ou a imagem de alguém será, alegadamente, violada, ele pode impedir a publicação?

É uma questão sobre a qual, confesso, ainda não tenho a tranqüilidade do ministro Gilmar Mendes (para quem o juiz pode e deve impedir que o dano moral seja perpetrado). Mas que a honra é inviolável, é. É evidente que há casos em que a indenização a posteriori não resolve o problema, mas não vejo no momento uma perspectiva política de se instaurar um sistema mais severo.

O segredo de Justiça vincula o jornalista?

Tendo a achar que não. O segredo de Justiça vincula os agentes que atuam e têm acesso aos autos.

Qual foi a contribuição à formação da doutrina atual no Supremo do ministro Sepúlveda Pertence?

Muito pouca. Não é falsa modéstia, mas não creio ter trazido de substancial algo de novo.

Nem mesmo na área penal?

Na área penal, uma maior experiência.

E nas demais áreas?

Está chegando a hora de selecionar os votos que vou levar para casa. O que sinto às vezes, revendo os votos dos primeiros tempos, é uma inveja danada da disposição e do entusiasmo que tinha. Mas recentemente, na área penal, teve repercussão o condicionamento do processo penal por crimes tributários à definição da existência e do débito questionado na instância administrativa. O problema do contribuinte que ainda está se defendendo nos conselhos de contribuinte e se vê atacado por trás pela Receita. Enquanto não esgotar a fase administrativa, não há fase penal. Sobretudo depois que a lei permitiu, porque hoje toda a legislação do crime tributário é apenas um auxílio do aparelho arrecadador. O que se quer mesmo é arrecadar.