Título: Impressão digital
Autor: Dora Kramer
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/03/2006, Nacional, p. A6

A cada nova emenda, o governo só piora o conjunto de uma obra de maus sonetos

Do ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, ao presidente demissionário do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, o governo reagiu em defesa do princípio geral da preservação do sigilo bancário e à agressão ao cidadão Francenildo Santos Costa, em particular, com 48 horas de atraso.

A história estourou no final da tarde de sexta-feira, mas suas excelências só se manifestaram a partir da noite de domingo, como se a brutalidade legal já não estivesse posta desde o primeiro momento. Preferiram, primeiro, ver se a ilação de que o caseiro fora pago para testemunhar a presença constante de Antonio Palocci na casa de lobby da república de Ribeirão Preto teria o efeito pretendido de, no mínimo, tornar Francenildo tão suspeito quanto Palocci.

Como o clima do fim de semana deixou bem claro que a tentativa de desmoralizar o caseiro foi, além de um fracasso, uma farsa com óbvia identificação de autoria, partiram para o segundo lance tentando dissociar o Planalto da uma trama devidamente exposta já na noite de sexta-feira.

Ficaram inicialmente calados no aguardo da repercussão, inesperadamente negativa dada a tendência ao conformismo que as pessoas têm exibido ante os mais variados absurdos cometidos seja por políticos que vão à Justiça contra atividades políticas, seja por partidos que preferem os tribunais aos votos como arma de disputa, por magistrados desprovidos de equilíbrio, imparcialidade e senso a respeito da própria condição, por instituições policiais e financeiras, como a PF e a Caixa Econômica Federal, que, voluntária ou involuntariamente, se prestam a figurações em conluios de ilegalidades patrocinadas pelo Estado.

Agora, quando vai ficando evidente que a divulgação dos dados bancários da testemunha de acusação ao ministro Palocci teve origem na Polícia Federal, as cenas de indignação e apelos para investigação deverão se avolumar. Não demora, muito provavelmente aparecerá um culpado - de escalão inferior - para completar a simulação.

Nem mil palavras de protesto à vilania por parte de integrantes - ou meros simpatizantes - do governo serão capazes de vencer a lógica dos fatos que apontam para a responsabilidade oficial num ato lesivo à Constituição. Se o Palácio do Planalto pretende mesmo convencer alguém de que não tem nada a ver com isso, para ser minimamente veraz terá de fazer mais que acionar dois ou três porta-vozes na defesa formal do Estado de Direito. Um ministro da Justiça dizer que a quebra de sigilo do caseiro é grave e precisa ser apurada é ação de chuva caindo no molhado.

O ministro Thomaz Bastos e o presidente da República repetiram não uma nem duas, mas inúmeras vezes, que os escândalos Waldomiro Diniz e do mensalão (para citar apenas dois) eram graves e precisavam ser apurados. Investigados a fundo, "doa a quem doer".

O primeiro até agora não teve uma conclusão, seu protagonista exonerado "a pedido" anda à solta sem nenhuma punição, e o segundo entrou no rol daqueles acontecimentos que na versão oficial simplesmente "não aconteceram". De denúncia passível de investigação profunda passou a intriga da oposição e deu-se por aí encerrado o assunto.

Se a repulsa governista à quebra do sigilo do caseiro traduz sinceridade e não é uma estratégia de advogado para contornar o constrangimento, isso só se comprovará mediante ações objetivas e rápidas para esclarecer o trajeto das informações bancárias de Francenildo Costa desde o momento em que ele as repassou à Polícia Federal.

Até lá, prevalecerá a evidência da montagem de um canhestro ardil, altamente desabonador para todas as biografias envolvidas, a respeito do qual se pode destacar ao menos um ponto positivo: permitiu que o discernimento geral fosse posto à prova e servisse de exemplo aos partidos, de governo e oposição, que estiverem pensando em adotar tais artimanhas na artilharia eleitoral.

Barreira

O PSDB está animado com a possibilidade de votar ainda este ano uma emenda acabando com o instituto da reeleição, inventado em 1996 pelo partido, agora se vê, apenas para proporcionar ao então presidente Fernando Henrique Cardoso mais quatro anos de mandato.

Mas, no que depender da opinião e da ação do presidente da Câmara, Aldo Rebelo, a emenda não tem a menor chance de prosperar. Ele expõe sua posição com clareza: "Não há nada que comprove que a reeleição não deu certo. Se ela exibe deformações, e são visíveis, é preciso enfrentá-las, corrigi-las e não simplesmente revogar a lei".

O presidente da Câmara aponta que a solução do dito pelo não dito soa mais inadequada ainda por ser uma iniciativa de quem "removeu montanhas" para aprovar a reeleição. Os tucanos, indiferentes ao flagrante atentado à coerência e dispostos a prestar essa homenagem ao casuísmo, fecharam seus acordos internos em torno da candidatura Alckmin dando como certa a aprovação, ainda neste primeiro semestre, do fim da reeleição.