Título: A eterna questão indígena
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Fonte: O Estado de São Paulo, 21/03/2006, Notas e Informações, p. A3

"A legislação indigenista brasileira é uma das melhores do mundo. Falta concretizá-la, sair da teoria." Esta declaração - citada ontem, no Estado, em reportagem de Mariana Caetano - feita pela presidente do conclave dos povos da América do Sul, Azelene Kaigáng, nas vésperas da abertura da 7ª Reunião da OEA para a Busca de Consensos sobre a Declaração Americana dos Direitos Indígenas, que começa hoje, dá uma amostra do sentido quase surrealista que às vezes assume a questão indígena em nosso país - e não apenas aqui. É como se o fato de a lei vigente deixar de ser cumprida fosse apenas um pequeno detalhe, ante a excelência de um texto legal.

Esse não é o único campo em que uma legislação não funciona, mesmo quando tem excelentes qualidades. Mas há de se entender que, quando os índios cobram do Estado o direito de usufruir dos recursos naturais de suas terras com autonomia, inclusive no manejo do subsolo, de propriedade da União, estão pretendendo mais do que inovação legal. Eles e as comunidades que exercem atividades em seu entorno - e com eles dividem espaço, como os garimpeiros - pretendem do Estado garantias práticas do cumprimento de normas, fiscalização e continuidade na ordem pública.

Uma das maiores demonstrações de que a questão indígena é complexa - complicadíssima - é o fato de os representantes dos 34 países membros da OEA e dos conclaves dos povos indígenas das Américas terem para discutir, e sobre ele decidir no ano que vem - conforme plano do guatemalteco Juan Leon, presidente do Grupo de Trabalho da OEA para a Declaração -, um documento que vem sendo preparado e discutido desde 1987. O documento antecipou em sete anos a Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas, ainda em preparo na ONU.

Para Juan Leon a reunião da OEA servirá para terminar a revisão geral de um texto legal consolidado e discutir a última seção de artigos, que trata das "provisões gerais". O primeiro dos 5 artigos desse capítulo, por exemplo, prevê que os Estados adotarão "as medidas legislativas", ou de outro tipo, necessárias "para fazer efetivos os direitos reconhecidos" na declaração. Vê-se assim que é generalizada nos países latino-americanos a preocupação de trazer para a realidade concreta princípios gerais contidos na organização da comunidade continental, sobre as populações indígenas. Mas aí uma indagação preliminar se impõe: há tantas semelhanças, assim, entre os índios de nosso Continente? Haverá identidade, por exemplo, entre remanescentes das adiantadas civilizações incaica ou maia e indígenas que ainda se situam no neolítico, como os nossos?

As especificidades das situações dos nativos de cada país também dizem respeito a uma das principais e polêmicas questões geradoras de conflitos, que é a do direito do subsolo. Reportagem de Nilton Salina, publicada no Estado de ontem, mostra como está a situação no Brasil. Já próximo de completar dois anos o assassinato de 32 garimpeiros na Reserva Roosevelt, continua a extração ilegal de diamantes, na terra dos cintas-largas. O Ministério da Justiça reconhece que pelo menos 300 garimpeiros atuam naquelas terras, alguns comandados pelos próprios índios. E garimpeiros instalados em cidades vizinhas garantem que esse número é bem maior - de 700 a 1.000 pessoas. Agora, numa demonstração gritante de que o Estado não tem controle algum sobre aquela parte do território, os caciques "proibiram" a Polícia Federal de entrar na reserva. Os índios chegaram a aprisionar alguns agentes policiais e até pintar um deles com urucum - o que consideram uma humilhação. Após simular cortar o pescoço de um delegado, com uma pena de gavião real, disse o cacique: "Você pensa que é autoridade? Você é autoridade na cidade. Aqui, nós somos a autoridade. E se você voltar aqui de novo..."

É preciso mais para se avaliar quão longe estamos do estabelecimento de uma legislação que funcione, de uma prática consentânea à ordem pública, apaziguadora de conflitos entre indígenas e outros brasileiros que também pretendam retirar sustento de suas reservas?