Título: Contra toda a lógica, contra toda a esperança
Autor: Carlos Fino
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/03/2006, Internacional, p. A13

Contra toda a lógica inscrita nos fatos - os crescentes preparativos bélicos americanos e a persistente arrogância do ditador iraquiano -, muita gente em todo o Iraque conservou quase até ao fim um pouco de esperança de que uma nova guerra poderia ser evitada.

Entre a partida dos inspetores da ONU e o ultimato de Bush a Saddam, alimentaram essa ilusão rumores que circulavam em Bagdá, segundo os quais agentes americanos e iraquianos iriam se reunir no Líbano para tentar uma saída de última hora.

As bases de um possível acordo eram a abertura das reservas petrolíferas nacionalizadas na década de 70 às companhias estrangeiras e uma solução política permitindo uma saída honrosa a Saddam, que deixaria o poder.

Mas, na tarde de 19 para 20 de março, já não havia mais espaço para dúvidas, ilusões ou esperança: dentro de poucas horas, a guerra seria uma realidade. A debandada da cidade acentuou-se e - derradeiro sinal - os comerciantes do bairro mais rico retiraram das lojas tudo o que tinha algum valor.

As ruas ficaram vazias e um inquietante silêncio tomou conta da capital iraquiana. O tempo enevoado acentuava o clima de inquietude e desconforto que se apoderava de tudo.

Eu e o cinegrafista Nuno Patrício, da RTP - a TV pública portuguesa -, assistimos com angústia crescente a esse rápido esvaziar da cidade e das estantes das lojas.

Pequenos comércios, onde ainda ontem as prateleiras estavam completas, apresentavam-se agora praticamente vazios. Foi com enorme esforço e depois de muito procurar que conseguimos finalmente arrumar um gerador de fabricação japonesa e umas dezenas de litros de gasolina suplementar que nos viriam a ser essenciais nas semanas seguintes.

Quando regressávamos ao nosso quarto, no 17º andar do Hotel Palestina - com magnífica vista sobre o Tigre e a poucas centenas de metros de uma das zonas mais nobres de Bagdá, onde se concentrava grande número de edifícios públicos, todos alvos potenciais da aviação americana -, apoderou-se de nós um indisfarçável nervosismo.

Sem necessidade, mudávamos objetos de um lado para o outro e nenhum de nós conseguia estar parado por muito tempo. Já perto das 19 horas olhei da varanda para o sol poente, envolto pelas negras nuvens de fumo que se erguiam das valas escavadas em torno da cidade pelo Exército iraquiano, onde ardiam milhares de litros de petróleo não refinado - rude e quase ingênua tentativa de criar um escudo de defesa contra os ataques aéreos. Senti-me como uma criança que subitamente tivesse deixado escapar das mãos sua bexiga.

Só então, notei que também eu, de forma inconsciente, tinha alimentado a ilusão de que a guerra podia ser evitada.

Agora, a realidade se impunha: impulsionado pela força do ar que rapidamente escapava de seu interior, essa bexiga de esperança desaparecia para sempre.

Não havia mais recuo, nem para onde fugir: tentar escapar era tão ou mais perigoso do que permanecer. Dali a pouco, a guerra iria começar e nós estávamos ali, dentro do alvo.

FURO MUNDIAL

Por fim, quando a noite desceu sobre Bagdá, o centro da cidade se iluminou talvez como nunca antes. Era como se as autoridades iraquianas quisessem sublinhar, numa mensagem subliminar, o quanto a noiva do Oriente Médio, como a cidade é conhecida na região, estava de bem consigo mesma e tranqüila, culpando quem quer que viesse perturbar essa paz quase esplendorosa.

Fora desse círculo de luz, invisíveis à vista desarmada, baterias antiaéreas estavam em pontos estratégicos prontas para entrar em ação e concentrações de tropas encontravam-se posicionadas entre vastos campos de palmeiras e tamareiras, guardando as entradas da cidade.

Em toda parte imperava um silêncio inquietante, só entrecortado aqui e ali pela passagem de raros automóveis que, em alguma situação de emergência, ou em missão oficial, ainda se aventuravam a atravessar as ruas e as pontes sobre o Tigre.

Nessa noite, por meio do videofone, entramos por diversas vezes ao vivo num programa especial de informação montado em Lisboa pela RTP, na previsão do ataque americano. Apenas para constatar, afinal, que em Bagdá nada acontecia de relevante, a não ser essa espera inquieta e angustiada.

Por volta das 5h15 da madrugada, hora de Bagdá (2h15 em Lisboa e 23h15 no Brasil), a direção de informação da RTP, convencida de que o ataque viria mais tarde, talvez até só no dia seguinte, resolveu que era tempo de encerrar o programa.

Quando recebemos ordens de desmobilizar-nos, eu e o Nuno desligamos os fios, fomos da varanda para o quarto do hotel, sentamos, olhamos um para o outro e respiramos fundo... Estávamos numa tensão nervosa incrível, pelo menos desde as 18 horas...

E foi aí, quando já pensávamos que iríamos poder descontrair-nos um pouco, talvez até dormir, que ouvimos um enorme estrondo e logo a seguir sentimos as estruturas do edifício do hotel tremerem.

Precipitamo-nos, então, para os equipamentos que acabávamos de desconectar, refizemos nervosamente as ligações, restabelecemos o contato por satélite e, por sorte, ainda apanhamos o programa no ar: "Venham de novo para Bagdá, a guerra já começou!", dissemos.

Mas não foi fácil convencer uma equipe de produção já com ordens de desmobilizar a refazer o contato

"A guerra já começou?! Como é que já começou se nem a CNN, nem a BBC, nem a Sky estão transmitindo?"- foi a primeira resposta desconfiada que obtivemos...

Quando, ao fim de alguma insistência nossa, entramos de novo ao vivo, o ataque sobre Bagdá já era maciço, com uma primeira salva de mísseis sobre o palácio da república e ministérios governamentais situados do outro lado do rio, ali mesmo em frente à varanda do hotel, a ponto de sentirmos as ondas de choque soprarem sobre nós e por vezes estilhaçarem alguns vidros.

Só minutos depois a CNN informava sobre o que estava acontecendo. Aliás - honra lhe seja feita -, reconhecendo que a estação portuguesa RTP tinha anunciado em primeira mão e ao vivo o início das hostilidades.

Duas razões explicam, no meu entender, esta proeza de uma pequena estação.

Uma de caráter tecnológico - o videofone, pequeno aparelho que transforma, através de um computador, os sinais de vídeo de uma câmara qualquer em impulsos passíveis de serem transmitidos via telefônica e por satélite para qualquer parte do mundo, a qualquer hora e em tempo real. De custo reduzido e fácil de operar, a nova tecnologia está ao alcance de qualquer estação medianamente equipada como a RTP, tornando dispensáveis grandes equipamentos de produção, geralmente só ao alcance das grandes estações.

Outra razão decorre da natureza inesperada da própria vida. Como hoje aconteceria no Haiti com qualquer equipe de televisão brasileira, é mais provável que as estações anglo-saxônicas estivessem informadas, pelas autoridades dos respectivos países, sobre a hora provável do começo dos bombardeios. Estando previstos para mais tarde, essas equipes de televisão estavam tranqüilas e provavelmente descansando.

Nós, que não tínhamos qualquer "inside information", tínhamos, pelo contrário, que nos manter vigilantes. E quando aconteceu o inesperado - um primeiro bombardeio por suspeita de que Saddam estaria naquele palácio àquela hora - nós conseguimos reagir mais rápido. Nosso mérito maior, se mérito houve, foi esse: não estar dormindo...

E agora? Nascido no pós-2ª Guerra Mundial, e tendo já vivido o espírito anticolonial da época, incluindo - nos meus verdes anos - as movimentações contra a Guerra do Vietnã, a grande interrogação que desde o início surgiu em relação ao atual conflito foi a de saber até que ponto a inevitável resistência que se iria seguir (por parte, pelo menos, das estruturas sunitas montadas durante o regime de Saddam) poderia, na nova situação histórica criada com a queda do muro e o desaparecimento da União Soviética, fazer frente ao inigualável e impressionante poderio econômico e militar dos Estados Unidos.

A aliança inicial dos americanos com as forças xiitas parecia indicar que a resistência seria, se não diminuta, pelo menos controlável.

O que parece ter escapado à análise foi uma crescente rede de solidariedade tribal e pan-árabe, que alimenta, por vezes por meio de insuspeitados canais, os diferentes grupos que se opõem à presença americana, e a complexidade dos cenários, com forças que parecem pretender a divisão do país em linhas étnicas, como na ex-Iugoslávia.

Resta saber se os Estados Unidos conseguirão ainda encontrar vias alternativas que estabilizem a situação ou se estamos, no fundo, contra toda a lógica e contra toda a esperança dos melhores analistas, assistindo à repetição, noutras condições históricas, do que ocorreu quando do domínio britânico do Iraque, no início do século 20.