Título: Progressão hedionda
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/03/2006, Notas e Informações, p. A3

S e desde a sua promulgação a Lei 8.072, de 25 de julho de 1990 - Lei dos Crimes Hediondos -, exibiu seu caráter extremamente polêmico, era de se esperar uma intensificação das divergências, suscitadas por esse diploma legal, a partir do momento em que o Supremo Tribunal Federal (STF), em fevereiro, determinou a inconstitucionalidade da proibição do regime de progressão de penas, relativas aos crimes classificados como hediondos. E é claro que a informação, com base em levantamento preliminar da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) do Estado de São Paulo, de que ao longo do corrente ano de 2006 nada menos do que 43 mil presos neste Estado, condenados por este tipo de crime, já terão cumprido um sexto de suas penas em regime fechado, razão pela qual poderão pedir à Justiça progressão para o semi-aberto, só poderá aumentar a apreensão e a sensação de insegurança que já se tornaram um sofrimento crônico da população.

O Judiciário de São Paulo está muito preocupado com a logística do atendimento à avalanche de pedidos de progressão, previstos para chegar a partir de abril. O juiz-corregedor dos presídios da capital, Carlos Fonseca Monnerat, avisa: "Os advogados, a Procuradoria de Assistência Judiciária (PAJ) e a Fundação de Amparo ao Preso (Funap) precisam de um tempo para preparar. Além disso, têm de juntar boletins informativos emitidos pela SAP." Já o Tribunal de Justiça prepara um esquema especial de "gerenciamento de crise", com remanejamento de juízes e serventuários para as Varas de Execução, além da ampliação de convênio do Serviço de Apoio às Varas de Execuções Criminais (Servec), pelo qual o Estado paga funcionários para ajudar a Justiça. Enfim, são providências administrativas das quais o Judiciário paulista - esperemos - saberá desincumbir-se a contento. Mas não se elidirá a natureza polêmica da questão da progressão nos crimes hediondos, tanto sob o aspecto conceitual quanto prático - vale dizer, quanto ao medo da população, ao saber que estão sendo despejados nas ruas dezenas de milhares de "criminosos hediondos".

Sob o ponto de vista conceitual, há que se dizer que alguns delitos são classificados consensualmente como hediondos, mas outros nem tanto. Ninguém retirará essa qualificação, por exemplo, do homicídio, quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, do latrocínio, da extorsão qualificada pela morte, da extorsão mediante seqüestro, do estupro e outros crimes que, por seu aspecto repulsivo, recebam da sociedade essa designação de hediondez. Mais duvidosa para muitos, porém, é essa qualificação, quando referida a outros crimes considerados hediondos pela lei, tais como o do tráfico de drogas, a falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produtos destinados a fins terapêuticos e medicinais, etc.

Não se pode deixar de relacionar a progressão da pena com o grau de periculosidade, derivado tanto da natureza do crime quanto do comportamento do condenado. Assim, por exemplo, um traficante de drogas pode não apresentar qualquer agressividade ou comportamento violento, quando preso ou liberto. Mas a facilidade com que possa retomar seu "negócio", no abastecimento de viciados em narcóticos, não recomendará que se evite colocá-lo nas ruas antes de cumprir integralmente sua pena? Por outro lado, às vezes a argumentação em favor da progressão para os crimes hediondos, mesmo que corresponda à realidade carcerária, pode significar uma verdadeira capitulação - ou conformismo - ante a imutabilidade de um péssimo sistema. Atente-se, por exemplo, às palavras do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Roberto Busato: "Nosso sistema penitenciário não recupera absolutamente ninguém. Ao contrário, coloca de vez na marginalidade todos os que foram postos na prisão e passam a viver no ambiente diário de extrema degradação de costumes das penitenciárias brasileiras." Então, quer dizer que haverá menor degradação nos presídios se nas ruas for despejado maior número de facínoras condenados?

É evidente que o magistrado não estará obrigado a conceder a progressão da pena se entender que o réu não a mereça. Há que se considerar, no entanto, que a reflexão maior a ser feita - e debatida - diz respeito à definição do que seja de fato, ou não, um crime hediondo.