Título: A Sérvia não purgou o veneno
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Fonte: O Estado de São Paulo, 18/03/2006, Internacional, p. A21,24

O que fazer com este cadáver? Como livrar-se dele? A negociação fúnebre que começou quando o corpo do ex-ditador foi descoberto na prisão de Haia, Holanda, prova que a Sérvia ainda não purgou o veneno de Slobodan Milosevic.

Cada um dos familiares de Milosevic propôs uma última morada diferente para o corpo. A mulher, Mira, refugiada na Rússia, queria que ele fosse enterrado em sua cidade natal, Pozarevac. O filho Marko, também refugiado em Moscou, preferia Belgrado, depois de o cadáver fazer uma pequena parada na capital russa. Enfim, a filha, Marija, que vive em Montenegro, recusou que Milosevic repousasse em uma Sérvia governada por seus inimigos.

O governo de Belgrado ficou irritado. Vojislav Kostunica, o primeiro-ministro nacionalista moderado, identificou dois perigos: o exagero - ou seja, enterrá-lo em Belgrado, na Galeria dos Grandes Homens - e a recusa de que os despojos indignos sejam enterrados no solo sérvio.

No primeiro caso, seria atiçar ao mesmo tempo os nacionalistas e o rancor dos democratas, que não esqueceram a epopéia sangrenta de Milosevic nas ruínas da antiga Iugoslávia (Croácia, Bósnia e Kosovo). No segundo caso, proibir o enterro do corpo na Sérvia seria levar aos estertores a ira dos ultranacionalistas.

O primeiro-ministro escolheu uma terceira opção: além de permitir a entrada da viúva do tirano, foi decidido que ele seria enterrado em sua cidade natal, Pozarevac, na Sérvia.

Qual seria o perigo de enterrá-lo em Belgrado, em uma cerimônia simples: o dia dos funerais, a nostálgica turba enfurecida da Grande Sérvia a celebrar o morto e a fazer do luto uma explosão nacionalista? Em Belgrado, ninguém acreditava nisso. A prova: a capital demonstrou uma calma extraordinária, quase uma apatia, quando a morte foi anunciada.

Outros mostraram ser mais crentes. Não dá para esquecer que Kostunica se pronunciou em 2001 contra a extradição de Milosevic para Haia (e o homem que decidiu pela extradição, o antigo primeiro-ministro Zoran Djindjic, foi assassinado em 13 de março de 2003).

Na verdade, os nacionalistas continuam presentes. A memória de Milosevic continua dando a cara a dois partidos que se opõem, a não ser pelo extremismo e o ódio pela democracia e pela Europa: a extrema direita e a extrema esquerda.

Não vai demorar para a Sérvia ver suas fronteiras retrocederem mais uma vez: a província sérvia do Kosovo (muçulmana e albanesa) obterá a independência (condicional) em meses. E Montenegro decidirá, por referendo, em 21 de maio, pela independência e sairá da Federação.

Falta pouco para que os dois outros assassinos da Bósnia e de Kosovo, Ratko Mladic e Radovan Karadzic, sejam enviados a Haia e, então, a Sérvia poderá escolher a via democrática, com uma futura adesão à União Européia que a libertará desses sonhos empesteados de glória e de sangue.