Título: Sob o império do tapetão
Autor: Dora Krame
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/03/2006, Nacional, p. A6

A confiança na lisura do procedimento legal, o crédito à conduta do juiz e a convicção de que decisões judiciais devem ser cumpridas sem discussão, pois obedecem à orientação fria da lei, são dogmas da democracia e assim seria de todo aconselhável que permanecessem.

Ocorre, entretanto, que se desenha no cenário institucional brasileiro um movimento nítido de inversão de valores em que outra cláusula pétrea do sistema democrático - o embate político pelo exercício da voz e a força do voto - vem sendo solapada pela ação dos tribunais.

A Justiça é usada, e, em alguns casos, se deixa solenemente usar, não para dirimir dúvidas, garantir direitos ou organizar as relações entre contrários, mas para assegurar vitórias e impor derrotas no plano político.

Quando as partes em conflito se vêem diante da impossibilidade de lutar mediante as armas tradicionais, recorrem aos tribunais; nem sempre o fazem de maneira ortodoxa. Buscam atalhos e recentemente têm contado com a colaboração de magistrados que, talvez incentivados pelo ambiente geral de acentuada degradação moral, já não exibem constrangimento em protagonizar situações que os põem em estado de franca suspeição.

A contaminação das relações entre magistrados e políticos não é inédita. A novidade é a falta de cerimônia com que essa promiscuidade é exibida em praça pública. Ao ministro Nelson Jobim deve-se atribuir a inauguração dessa fase de, digamos, transparência total. Na presidência do Supremo Tribunal Federal, assumiu sua condição de híbrido, exercendo ao mesmo tempo a função de julgador e de parte decidindo sistematicamente em favor dos interesses de políticos governistas enquanto alimentava planos de integrar como vice a chapa à reeleição do presidente Luiz Inácio da Silva.

Entusiasmado com a ausência de conseqüências de tal atitude a despeito das críticas, o presidente do Superior Tribunal de Justiça, Edson Vidigal, também assumiu sua feição política anunciando projeto de se candidatar pelo Estado do Maranhão sob o abrigo político do amigo José Sarney, responsável por sua indicação ao tribunal quando presidente da República.

Eis que agora Vidigal atende o padrinho no pedido de liminar para cancelar as prévias do PMDB marcadas para escolher o candidato do partido à Presidência da República. E o fez já sem a discrição de dezembro de 2004, quando a concessão de uma liminar pelo STJ suspendeu os efeitos (depois mantidos) de convenção do partido que decidira pela candidatura própria por solicitação do mesmo senador Sarney.

Em ambas as ocasiões, os reclamantes não tiveram votos suficientes para vencer seus opositores dentro do partido. Recorreram à Justiça mediante argumentações toscas e sem nexo; mas não é a ausência de fundamentação nem a tentativa dos políticos de ganhar no chamado tapetão o que surpreende. Chama atenção é a naturalidade com que integrantes do Judiciário se mostram disponíveis para servir a manobras em detrimento da própria credibilidade como magistrados atingindo, em última análise, a confiabilidade do Poder Judiciário.

Como acontece no Legislativo, a parte é tomada pelo todo e a conta da desmoralização é paga coletivamente. No caso do PMDB a situação é ainda pior do que as repetidas interferências do Judiciário nos procedimentos do Congresso. O partido é um emaranhado de interesses, essas prévias não contam com o reforço sincero de todos os que delas se dizem patrocinadores e sua realização ou não, cancelamento ou não, atendem a circunstâncias cujos detalhes (principalmente os sórdidos) estão fora do nosso alcance. Por mais razão, um ministro de tribunal superior - ou qualquer outro - deveria se abster do envolvimento nas querelas que não dizem respeito ao capítulo das garantias legais do cidadão e das instituições.