Título: Liberdade blindada
Autor: Jorge Werthein
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/03/2006, Espaço Aberto, p. A2

O Brasil tornou-se referência mundial em carros blindados, noticiou o Estado em 15 de fevereiro. A matéria dizia que fabricantes de vidros blindados estão ganhando mercado no Oriente Médio, na América Latina e nos EUA. No ano passado, relata o jornal, foram blindados 4 mil veículos no Brasil, mil a mais que em 2004. O mercado está em franca expansão e com perspectivas de crescimento, sobretudo na área arquitetônica, com procura de vidros blindados para edifícios e residências.

Seria essa uma boa notícia? Certamente que sim, para centenas de pessoas envolvidas na fabricação e no comércio da blindagem no Brasil. Contudo, em perspectiva mais ampla, essa é, obviamente, uma notícia ruim. Trata-se de mais uma evidência de que a violência urbana tem, no mínimo, dois subprodutos imediatos: o isolamento dos indivíduos (devido ao medo) e a indústria da proteção particular. Blindar-se contra a violência passou a ser privilégio de endinheirados e fonte de lucro para quem oferece proteção - seja em forma de vidros à prova de bala, de sofisticadas armas de fogo ou de homens com licença para atirar. Proteção particular converteu-se em mercadoria "fina" e, em casos extremos, símbolo absurdo de status social.

À primeira vista, tanta proteção faz sentido. As armas de fogo causam, no Brasil, a cada ano, aproximadamente 38 mil mortes. São, em média, cem vítimas por dia. De 1979 a 2003, foram computados meio milhão de óbitos por causa dessas armas. Esse tipo de violência tem custado mais vidas de brasileiros que guerras em outras regiões do mundo.

Diante desse quadro, o que fazer? O senso comum tende a defender a repressão. Exigem-se mais prisões, policiais nas ruas, leis rigorosas, fortes aparatos de segurança. Os mais indignados defendem a pena de morte. Querem o "olho por olho, dente por dente", mais violência contra a violência. Mas é preciso enxergar além do senso comum e buscar soluções sustentáveis. Uma delas - a melhor delas - é a prevenção.

Antes de tudo, cabe estimar os custos da violência. Depois, os custos de reprimi-la. Finalmente, comparar as vantagens da prevenção e evitar todos esses custos.

Em 2004, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou o relatório As Dimensões Econômicas da Violência Interpessoal, que traz à mesa a alta conta que a sociedade paga pela violência. O estudo relaciona gastos com saúde, causados por violência, com o PIB: 1,9% do PIB no Brasil, 4,3% na Colômbia, 1,3% no México e 1,5% no Peru.

O problema não está restrito aos países em desenvolvimento. Na Inglaterra e no País de Gales, os custos da violência interpessoal estão estimados em mais de US$ 40 bilhões por ano. Estimativas sobre os custos da violência nos EUA chegam a mais de US$ 300 bilhões por ano, segundo o relatório da OMS.

Os gastos governamentais encontram eco nos gastos privados, como demonstrou a matéria do Estado. Em metrópoles de países latino-americanos se observa o surgimento de verdadeiro exército de seguranças particulares e de arsenais de proteção a veículos, lojas e residências. Além de ter custo material altíssimo, representa mais um fator de exclusão social, pois só têm acesso a esse tipo de segurança aqueles que podem pagar por ela. Abre-se, assim, mais um fosso. De um lado, encastelados em seus condomínios, estão os que podem comprar proteção. De outro, os que são obrigados a contar com a sorte. Entre eles, criminosos, ao mesmo tempo vítimas e algozes, causa e conseqüência das várias formas de violência urbana.

Pesquisas indicam que medidas preventivas contra a violência interpessoal valem a pena. O Ato (Constitucional) sobre Violência contra a Mulher, de 1994, nos Estados Unidos, resultou em benefício líquido de US$ 16,4 bilhões, incluindo US$ 14,8 bilhões em custos com vítimas, que foram evitados. A implementação de uma lei de cadastramento de armas de fogo no Canadá custou US$ 70 milhões, muito pouco se comparado ao custo total anual de US$ 5,6 bilhões com ferimentos que eram causados por armas de fogo naquele país.

O tempo avança, e é preciso agir. Governos, sociedade, empresas, indivíduos necessitam construir, juntos, políticas públicas sustentáveis que garantam segurança e bem-estar. Prevenir é possível. Conter o avanço da violência, também. O Brasil tem experiência exemplar de união de forças com resultados positivos. Teve êxito quando se mobilizou pelo combate à expansão da aids e também foi bem-sucedida a experiência da administração pública em Diadema (SP) que reduziu os altos índices de homicídio no município.

Até 1999, Diadema contava com 200 favelas e ocupava o topo do ranking de homicídios do Estado de São Paulo, com uma média de um assassinato por dia. Em 2004, dois anos depois da implantação da Lei Seca, a média mensal de homicídios caiu para 10,8 pessoas, segundo a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo. Diadema combinou a adoção dessa lei com política rigorosa de fiscalização, acompanhada de projetos de inclusão social voltados para a prevenção da violência. Além disso, investiu alto nas favelas. Em quatro anos, 210 núcleos, de um total de 212, foram urbanizados e integrados à cidade.

Diálogo, mobilização social e vontade política são elementos-chave para vencer a violência urbana. Sem diálogo entre os diversos atores sociais não se estabelecem posturas de mudança favorável. Sem mobilização social não se atinge uma cultura de paz. Sem vontade política não haverá jamais políticas públicas sustentáveis, que transcendam governos e se constituam em ações de Estado. Sem inclusão tampouco haverá sustentabilidade para essas ações. Depende, portanto, de todos e de cada um mudar o quadro atual de violência e substituí-lo por um cenário de paz, onde todos tenham o prazer inestimável de viver sem medo.