Título: Acinte e mansidão na CPI
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Fonte: O Estado de São Paulo, 17/03/2006, Nacional, p. A3

Nos Estados Unidos, a 5ª Emenda à Constituição estipula que ninguém pode ser compelido a testemunhar contra si próprio. Ali, portanto, quem queira guardar silêncio ao depor a uma comissão parlamentar, por exemplo, pode invocar The Fifth - expressão que ficou famosa na caça às bruxas promovida nos anos 50 pelo senador Joseph McCarthy, na Comissão de Atividades Antiamericanas do Senado. Mas, se o depoente invocar o seu direito constitucional para não dizer nem mesmo quantos filhos tem, como se chamam e como se chama a sua mulher, poderá sair do recinto algemado por escárnio à comissão.

Não correria esse risco no Brasil, a julgar pela mansidão com que a CPI dos Correios se houve diante do acintoso comportamento do publicitário Duda Mendonça na parte aberta do seu segundo depoimento ao colegiado, na quarta-feira. Munido de um desses habeas-corpus costumeiramente fornecidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) aos chamados a se explicar em inquéritos parlamentares e orientado por um advogado que interpretou a salvaguarda concedida ao cliente como uma armadura que o tornaria invulnerável, Duda fez de sua nova ida à CPI uma palhaçada.

Mas não foi ele o palhaço. Papel infeliz tiveram os seus patéticos inquiridores - que, mesmo sabendo que as suas perguntas não seriam respondidas, se exibiam perante a mídia - e, por falta de pulso, o indignado presidente da comissão, senador Delcídio Amaral. Como observou ontem neste jornal a colunista Dora Kramer, ele alertou para os perigos da situação em que um depoente, de posse de um habeas-corpus, se nega a falar seja o que for, sob o cínico pretexto de não saber distinguir quais respostas poderiam ou não incriminá-lo. Mas Delcídio deveria ter ido ao fim da linha.

Não tomando ele próprio a iniciativa, os membros da CPI que se dão ao respeito exigiriam que desse voz de prisão ao ex-marqueteiro de Paulo Maluf e Lula da Silva quando se recusou a dizer quantos filhos tem - ou em qualquer outra passagem similar do seu espetáculo desmoralizador para a comissão de inquérito. Sobre o pseudodepoente poucas dúvidas há. É farta a documentação liberada pelas autoridades americanas que atesta que ele mentiu no seu outro depoimento, quando admitiu ter apenas uma conta não declarada, a Dusseldorf, no exterior. Outras quatro já foram identificadas.

A questão, em última análise institucional, que se coloca é a do poder do Congresso para elucidar crimes capitulados em lei, ainda mais contra o patrimônio público. Decerto nem a mentira aberta nem o silêncio debochado impedem uma CPI de indiciar o acusado, no seu relatório final. Mas isso não elide o problema do alcance das decisões judiciais que tolhem a apuração dos fatos pelo Legislativo. Anteontem, numa situação literalmente extrema, o presidente da CPI dos Correios e os seus pares perderam uma ótima oportunidade de testar os limites da proteção concedida pelo STF a uma figura cuja imagem nem o melhor dos marqueteiros, a esta altura, seria capaz de recompor.

Às vezes, o único delito caracterizado de um suspeito pode ser o de faltar com a verdade. Tome-se o caso do acuado ministro da Fazenda, Antonio Palocci - que já contribuiu para o léxico da temporada 2005/2006 das denúncias de corrupção com a sua "impropriedade terminológica" (no caso do uso de um avião alugado pelo PT). Um motorista e um caseiro, insuspeitos, salvo prova em contrário, de agir por motivos espúrios, asseguraram que ele esteve, sim, na sede da República de Ribeirão Preto, em Brasília, por onde circulavam moeda corrente e damas da noite.

Em duas entrevistas, uma ao Estado, outra coletiva, Francenildo, o caseiro, contou com riqueza de detalhes as visitas do ministro à mansão do Lago Sul onde nunca teria posto os pés, como afirmou categoricamente à CPI dos Bingos. Confirmou tudo ontem à mesma CPI, antes de seu depoimento ser suspenso por uma liminar do STF. Na segunda entrevista, Francenildo lembrou que certa vez Palocci lhe pediu ajuda pelo interfone porque não conseguia sair do casarão - acabou saindo pela porta dos fundos, providencialmente aberta pelo empregado. Eis uma metáfora perfeita para as atribulações do ex-prefeito de Ribeirão Preto: ele não consegue sair da encrenca em que mergulhou com a sua negativa à CPI.

A menos grave das acusações que pesam contra ele é a que está complicando mais a sua vida.