Título: "Não vejo risco de atrelamento do STF"
Autor: Marcio Chaer
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/03/2006, Nacional, p. A13

Marco Aurélio acha que o Supremo, mesmo com a maioria de integrantes nomeada pelo atual governo, é independente

Marco Aurélio Mello, ministro do Supremo Tribunal FederalEntrevistaO ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello é, de longe, o ministro mais detalhista entre seus pares. É raro um julgamento em que ele não desafie os colegas com um ponto de vista novo ou divergente. Mas é graças ao espírito irrequieto e aos questionamentos de Marco Aurélio que muitos pontos de vista quase fossilizados foram revistos e hoje fazem parte da jurisprudência da Casa.

Não por acaso é o ministro mais aclamado entre os advogados, que se entusiasmam com a criatividade do juiz que não hesita em contrariar um tabu da Justiça brasileira: o de que antes vem a lei e depois o direito de quem reivindica. "Primeiro idealizo a solução mais justa. Só depois vou buscar apoio na lei", afirma.

Em algumas semanas, ele acumulará com seu cargo no STF o de presidente do Tribunal Superior Eleitoral e presidirá as eleições deste ano. Tipo de notícia que não agrada, por exemplo, aos ocupantes do Palácio do Planalto, habituados a um tipo de solidariedade de classe dos dirigentes de tribunais. Marco Aurélio saboreia com orgulho a fama de independente.

Mas nem por isso é imprevisível. Nem nos votos, nem na rotina. Ele é metódico, pontual, rigoroso com a produtividade da equipe e severo em caso de falhas. Disciplinado, pratica natação, tênis e equitação. Depois dos exercícios, em sua bela casa no Setor de Mansões Dom Bosco de Brasília, aboleta-se em seu escritório particular - entupido de processos -, saca um gravador e passa a trabalhar, sozinho, ditando votos e despachos que, depois de degravados, serão minuciosamente conferidos e assinados.

Entre o Marco Aurélio provocador e disciplinado há outro ser. Ele dirige pela cidade uma potente moto Kawasaki de 1.500 cilindradas. Usa em seu celular o hino do Flamengo como toque de chamada e cultiva as amizades com devoção.

Na terceira entrevista da série com os ministros do STF feita pelo site Consultor Jurídico para o Estado, Marco Aurélio analisa a nova face do tribunal e seu papel no Brasil.

O Supremo alcançou visibilidade inédita na história. O que mudou?

Depois que cheguei ao Supremo houve mais de 11 substituições de ministros. Sempre modificações substanciais porque cada juiz tem seu perfil técnico e humanístico. Nesse itinerário, o tribunal sai de uma postura mais conservadora e ortodoxa para ser mais ágil na atuação, mais sensível aos avanços culturais e aos anseios da sociedade. E, espero, mais preocupado com o bem-estar e a visão dos contribuintes. Não só na relação tributária, mas como cidadão, o patrocinador de todos os serviços públicos.

Nessa ótica, cabe ao advogado-geral da União defender o presidente em processos eleitorais, sabendo que ele é candidato à reeleição?

Entendo que não. Levantei essa questão no Tribunal Superior Eleitoral. Os demais ministros concluíram que, enquanto ele não tiver candidatura registrada, conta com a defesa da União. Mas, se ele for multado como pré-candidato, quem pagará a multa? Nós? A legislação veda a propaganda extemporânea. E o exemplo maior na República é o do presidente. Se ele escapa do rigor da lei com a estrutura do Estado, isso não repercute bem. Afinal, o mesmo se aplicará a todos os prefeitos e governadores que concorrerão à reeleição.

Em termos de doutrina, que exemplo de mudanças houve com a chegada dos novos ministros indicados pelo governo atual?

Era um tabu questionar ato do Congresso praticado a partir de regimento interno. Batia-se sempre na mesma tecla de que não cabia a jurisdicionalização dos atos dos parlamentares, como se os regimentos das Casas não fossem documentos para ser respeitados e pudessem ser interpretados ao sabor das circunstâncias e os interesses das minorias pudessem ser rasgados pelos dirigentes das comissões ou das Casas.

No sentido de participar das grandes decisões nacionais, pode-se dizer que hoje o Supremo governa?

Não, o Supremo não governa. O Supremo é um fator de equilíbrio. Surge como poder moderador, destinado a garantir a estabilidade e os valores nacionais, que são perenes. Cada governante tem seu plano para buscar o êxito. Às vezes, no anseio de tornar efetivo esse plano, atropela a lei. E a Constituição não pode ser atropelada.

Não é atribuição do Supremo preocupar-se com governabilidade?

Nosso compromisso não é com políticas governamentais e sim com algo maior, que é o previsto na Carta. Assusta-me quando se proclama que se deve homenagear a governabilidade ao interpretar as leis. A governabilidade é que tem de se adaptar à legislação.

Foi a Constituição de 1988 que possibilitou a ampliação do papel do Supremo?

Houve uma ênfase maior na atuação do Supremo, principalmente no campo do processo objetivo - o controle concentrado de constitucionalidade onde não está envolvido o direito deste ou daquele cidadão, mas o de toda a sociedade. Nesse ponto é importante a abertura para que novos setores pudessem questionar a constitucionalidade de leis ou atos junto ao Supremo. Antes de 1988 só o procurador-geral da República podia fazer o questionamento. Um agente que poderia ser destituído do cargo a qualquer momento pelo presidente da República.

Qual a expectativa em relação ao mandado de injunção?

Espero que seja recuperado pelo Supremo. Só com esse instrumento se pode realizar os direitos previstos na Constituição, mas que ainda dependem da regulamentação pelo Congresso. Passados 17 anos da vigência da Constituição, ainda há muito o que regulamentar nessa Carta - que é pouquíssimo amada, já que foi emendada mais de 50 vezes.

O que significou a renovação de quadros no Supremo?

Oxigenação. E não vejo risco de que o tribunal, com maioria indicada pelo atual governo, possa ter qualquer tipo de atrelamento. Não se agradece a escolha com a toga. A cadeira é vitalícia justamente para que o ocupante exerça o ofício com independência.Leia a íntegra da entrevista no site