Título: Hora de o Congresso dizer basta!
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/03/2006, Notas e Informações, p. A3

Tivesse suficiente sensibilidade política (e ética) para captar o grau de decepção da sociedade brasileira, no que diz respeito à confiança que deveria inspirar a majestática imparcialidade da Justiça do País - especialmente sua cúpula; tivesse a necessária lucidez para avaliar todo o estrago já causado à imagem do Judiciário, por decisões estapafúrdias e notoriamente tendenciosas dos Tribunais Superiores em favor de interesses políticos do Planalto; tivesse o mínimo de objetividade de juízo para aquilatar o quanto o Judiciário tem ferido a independência do Legislativo, num processo de crescente intromissão de atribuições entre Poderes -, decerto o ministro Nelson Jobim, em sua fase de retirada da presidência da mais alta Corte de Justiça do País, pelo menos buscaria outro argumento, que não a negação do "grave risco ao interesse público", para justificar a rejeição do recurso do Senado, que tentava liberar o depoimento do caseiro Francenildo Costa à CPI dos Bingos.

Se já não era do maior interesse público o depoimento do ex-caseiro da sede nacional da já famigerada República de Ribeirão Preto - depois que, em entrevista a este jornal, provou em pormenores que o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, faltara com a verdade ao dizer que lá jamais estivera - pela violência perpetrada contra aquele cidadão depoente, na divulgação criminosa de seus extratos bancários, com o objetivo de "pôr em dúvida sua credibilidade" (termos usados pela própria revista que fez a "denúncia", embora no texto da matéria revelasse conhecer a origem não escusa dos depósitos efetuados na conta de Francenildo), já haveria motivo mais do que suficiente para que a opinião pública brasileira fosse devidamente esclarecida por novo depoimento do caseiro àquela Comissão Parlamentar de Inquérito - visto que o primeiro fora interrompido por decisão igualmente monocrática de ministro do Supremo Tribunal Federal.

Como o extrato da conta do caseiro fora obtido no momento mesmo em que este se encontrava em repartição da Polícia Federal - configurando-se, assim, o indiscutível crime de quebra de sigilo, visto não ter havido autorização judicial para isso -, tornou-se o assunto do máximo interesse público, acima de governo ou de ministros de Estado, por envolver, em grave suspeita, a Caixa Econômica Federal, subordinada ao Ministério da Fazenda.

Considerações jurídicas à parte - e aqui o risco maior é o de que a população brasileira se acostume a apartá-las da Ética -, o que mais choca é a desproporcionalidade das coisas: com tantos suspeitos de participação em esquemas milionários de corrupção, que apesar de gritantes indícios de culpa têm tido seus sigilos bancários, fiscais e telefônicos ferreamente protegidos, judicialmente negados os pedidos de quebra - e o caso mais recente é o de Paulo Okamotto, depois de tantos e tantos outros -, por que surgiram e se divulgaram com tamanha rapidez os extratos da conta bancária de um humilde trabalhador, como Francenildo? E por que, mesmo depois das explicações comprovadas que deu sobre a origem dos depósitos - com o que foi obrigado a revelar intimidades do relacionamento familiar (estas, sim, que mereceriam estar sob a proteção do segredo de Justiça) -, o caseiro continuou a merecer de políticos petistas e acólitos do Planalto a insinuação de que fora "comprado" para prestar aquele comprometedor testemunho sobre a mansão do Lago Sul?

Mas em tudo isso o que deve se registrar como mais grave é a invasão de atribuições entre Poderes, que vem em um crescendo e tem chegado a lances escandalosos. Mencione-se, como ilustração, a aberrante atitude do presidente do Tribunal Superior de Justiça (STJ), Edson Vidigal, ao se imiscuir na liberdade decisória de um partido político, anulando a prévia do PMDB, em defesa notória dos interesses de seu padrinho político, senador José Sarney e do candidato Lula da Silva - e sem demonstrar o mínimo pejo de, na mesma ocasião, ir ao Maranhão para lançar a própria candidatura ao governo daquele Estado!

É preciso que o Legislativo comece a dizer basta. Melhor seria então que, para isso, simplesmente ignorasse a decisão de Jobim e fizesse a oitiva de Francenildo Costa na CPI dos Bingos. Com certeza, assim agindo o Legislativo deixará claro que na representação legitima que faz da sociedade brasileira ínsita não está a submissão subserviente e humilhante a outros Poderes.