Título: O mito dos 'alunos fantasmas'
Autor: Paulo Renato Souza
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/04/2006, Espaço Aberto, p. A2

Recentemente o Ministério da Educação (MEC) divulgou os resultados do Cadastro do Ensino Básico referente ao ano de 2005. Com grande estardalhaço, anunciou que se haviam registrado apenas 43,4 milhões de alunos, 13 milhões a menos do que o Censo Escolar do mesmo ano. Os órgãos de imprensa foram uníssonos na interpretação de que essa diferença corresponderia basicamente a "alunos fantasmas" registrados no Censo Escolar. Falou-se abertamente em fraude no censo motivada pela ganância de prefeitos e governadores por mais recursos para a educação distribuídos pelo MEC segundo o número de alunos em suas escolas. Não assisti à coletiva do sr. ministro, mas a unanimidade na imprensa me faz supor que ele próprio induziu a essas ilações. Essa interpretação é equivocada e, se há erros de proporções oceânicas como essas entre as duas fontes de dados, eles devem estar no novo cadastro, e não no Censo Escolar.

Os dados do Censo Escolar que assinalam a cifra de 56 milhões de alunos provêm de declarações das escolas consolidadas pelos Estados e municípios e agregadas pelo Inep, órgão do MEC. Por outro lado, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) realiza os Censos de População a cada dez anos e, anualmente, a Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (Pnad). Em ambos os casos as unidades básicas onde se obtêm as informações são as famílias. Com base nesses instrumentos o IBGE calcula a população segundo faixas de idade e estima anualmente a taxa de escolarização das crianças e jovens no nosso país. Assim, são essas informações que nos permitem assegurar, por exemplo, que hoje mais de 97% das crianças de 7 a 14 anos de idade estão na escola. Portanto, segundo os dados do IBGE é também possível estimar, com uma margem pequena de erro, o número total de alunos que estão freqüentando a escola nos diversos níveis de ensino. Posso assegurar, porque me preocupei enquanto ministro de averiguá-lo, que as cifras globais que se extraíam dos dados do IBGE - com origem na declaração das famílias - e os dados do Censo Escolar - com origem na declaração das escolas - eram totalmente compatíveis, o que na época me deu segurança sobre as cifras globais com que trabalhávamos no MEC a partir de nossas próprias fontes.

Obviamente, uma coerência global não significa que, no nível de cada Estado e cada município, não possam ocorrer erros ou fraudes que levem à existência de "alunos fantasmas". Essa preocupação foi especialmente importante no Censo Escolar do ano de 1997, pois com base nele passaríamos a distribuir a partir do ano seguinte todos os recursos do Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério (Fundef) e que correspondem a 15% de toda a arrecadação de Estados e municípios. Naquela oportunidade contratamos uma auditoria no Censo Escolar, realizada pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), órgão ligado à Universidade de São Paulo (USP). A auditoria constatou indícios de erros ou fraudes em alguns municípios de alguns Estados e foram realizadas pesquisas de campo para auditar os dados informados. Foram comprovadas irregularidades em algumas dezenas de municípios, o que nos levou a reduzir em pouco menos de 200 mil o número total de alunos em relação à informação originalmente prestada.

A partir daí, passamos a cotejar anualmente as informações prestadas por cada município com os seus respectivos dados populacionais segundo faixas de idade estimados pelo IBGE. Com base nessas análises, pequenos ajustes eram feitos a cada ano, a partir de indícios claros de erros em algumas informações. Além disso, todos os anos, no final de agosto, o MEC publica uma versão preliminar do Censo Escolar e dá um prazo para reclamações de Estados e municípios. Dado que as verbas do Fundef se distribuem de acordo com o número de alunos nas redes estaduais e municipais, há uma vigilância estreita entre eles e casos de erros ou fraudes podem ser facilmente detectados e contestados pelos Estados ou municípios que se sentirem prejudicados. Não me consta que alguma mudança metodológica tenha sido introduzida no Censo Escolar de 2005 em relação às práticas vigentes até 2002.

Por outro lado, o MEC realizou em 2005, pela primeira vez em sua história, o Cadastro do Ensino Básico, no qual as escolas devem proporcionar informações detalhadas sobre cada aluno para criar um sistema nacional de controle da freqüência escolar. Esse novo sistema não tem nem a tradição nem a obrigatoriedade legal que o Censo Escolar possui. Ora, conhecendo a precariedade das redes de muitos municípios neste nosso país com tantas disparidades regionais, seria capaz de prever uma enorme dificuldade em atender numa primeira ocasião a esse novo e complexo pedido do MEC. Não me consta também que os dados do cadastro tenham sido cotejados com os da população por faixa etária em cada município brasileiro, ou que tenham sido objeto de uma auditoria externa independente, como ocorreu no caso do Censo Escolar. Seguramente esses dados globais do cadastro agora divulgados são muito inferiores às estimativas de alunos feitas com base nos dados do IBGE obtidos a partir de informações domiciliares.

Por todas essas razões, o erro deve estar mais numa subestimação do número de alunos no cadastro do que num exagero no Censo Escolar. "Inventar" 13 milhões de alunos, ou seja, 30% a mais do que o que seria a realidade, é simplesmente impossível sem que isso fosse detectável no próprio Censo Escolar. Para alcançar tais proporções deveria ter havido uma verdadeira conspiração envolvendo os grandes Estados e os grandes municípios, pois os pequenos não teriam sequer volume de população para fazê-lo. É uma simples questão de lógica e bom senso.

Paulo Renato Souza, economista, foi ministro da Educação no governo Fernando Henrique Cardoso, gerente de Operações do BID, reitor da Unicamp e secretário de Educação de São Paulo no governo Montoro E-mail: paulo.renato@isd.org.br