Título: Inconfidência corporativa
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Fonte: O Estado de São Paulo, 23/03/2006, Notas e Informações, p. A3

Depois de proibir todas as instâncias e setores do Judiciário de contratar parentes de juízes de até terceiro grau para exercer cargos de confiança e funções comissionadas, pondo fim ao nepotismo judicial, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tomou outra decisão moralizadora ao reafirmar que o teto salarial da magistratura é de R$ 24,5 mil mensais e que na Justiça estadual o subteto equivale a 90,25% desse valor, aí incluídas quase todas as vantagens funcionais por eles recebidas.

Até agora, vários Tribunais de Justiça vinham excluindo essas vantagens do cálculo dos salários, o que permitia aos seus integrantes receber até R$ 50 mil, desrespeitando o teto fixado pela Constituição. Algumas cortes chegaram a criar 42 tipos de gratificações. Esse é o caso, segundo o CNJ, dos Tribunais de Justiça de Minas Gerais, Acre, Amazonas, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraíba e Santa Catarina. Eles agora terão o prazo de três meses para se adequar às duas resoluções que o órgão acaba de baixar, sob pena de seus dirigentes incorrerem em crime de responsabilidade.

Dos mais de 14 mil juízes brasileiros, só 2 mil serão atingidos por essa medida. Por isso, a decisão do CNJ foi aplaudida pela primeira instância da magistratura. Mas, como era esperado, causou descontentamento entre os magistrados de segunda instância que recebem salários superiores ao teto.

Antes mesmo do anúncio da última decisão do CNJ, numa iniciativa inédita, os 117 desembargadores do Tribunal de Justiça de Minas Gerais haviam decidido declarar-se em "estado de insubmissão" contra o CNJ. Além de terem promovido uma "greve de advertência", eles lançaram um documento com o título "Denúncia e Conclamação", no qual afirmam que não respeitarão o teto imposto pelo órgão, incitam os demais Tribunais de Justiça a formarem um "movimento de resistência", censuram o Congresso, que criou o CNJ ao aprovar a Emenda Constitucional 45/04 - a Reforma do Judiciário -, criticam o apoio dado pelo STF às medidas moralizadoras desse órgão, investem contra a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o governo federal, que as apoiaram, e até tentam envolver os militares em sua rebelião. "(O Legislativo) banalizou a corrupção, instituindo a remuneração criminosa de parlamentares para aprovação de projetos de seu interesse. (O Executivo) governa quase que exclusivamente por medidas provisórias e vem procurando, a todo custo, enfraquecer as Forças Armadas, destinando-lhes, a cada ano, verbas menores; e, finalmente, o que é pior, montou ao seu feitio o STF", diz o documento.

Diante de tanto destampatório, os integrantes do STF optaram por um prudente silêncio. De acordo com a Constituição, o Supremo, que tem decidido favoravelmente às iniciativas moralizadoras do CNJ, terá de julgar a rebelião dos desembargadores mineiros.

Já a direção da OAB se limitou a distribuir uma nota serena, na qual afirma que o protesto dos desembargadores mineiros é uma demonstração de "insensibilidade social". E, numa resposta sensata, o presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros, Rodrigo Collaço, afirmou que respeitar o teto salarial, em vez de deixar a magistratura menos independente, reforça sua credibilidade perante a opinião pública. "Não há mais possibilidade de o teto ser descumprido sem nenhuma conseqüência", disse.

Este episódio mostra o quão enraizado é o corporativismo do Judiciário. Em nome de sua autonomia, alguns Tribunais de Justiça converteram prerrogativas funcionais em instrumento de multiplicação de vantagens salariais. Em nome do "pacto federativo", muitos desembargadores passaram a ignorar decisões legítimas do Congresso e a inverter valores, como se as Constituições estaduais estivessem acima da Constituição Federal. E o "alerta à sociedade", por parte de quem insiste em ganhar mais do que a lei permite, investindo contra os demais Poderes porque estão cumprindo o papel que a sociedade deles espera, é uma atitude temerária, pois leva a confrontos institucionais.

Ao colocar interesses corporativos à frente dos interesses maiores da Nação, esses juízes - que são minoria, no âmbito da magistratura - estão investindo contra o próprio Estado de Direito que juraram defender.