Título: Não está 'mal' - está péssima
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/03/2006, Notas e Informações, p. A3

Erra o presidente Lula ao dizer que a situação está "mal". Nem tanto porque o certo seria ele dizer que a situação está má - ou ruim - mas porque a situação está pior do que isso: está péssima. E o único responsável por isso é o esquema de poder petista - no Planalto, na Esplanada dos Ministérios, na administração indireta, no Congresso Nacional. Acuado por uma seqüência de testemunhos praticamente irrefutáveis de que o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, mentiu à CPI dos Bingos quando disse que nunca esteve no alegre casarão do Lago Sul onde se escarrapachava a República de Ribeirão Preto em Brasília, o governo - sim, o governo, e não um solitário servidor público "mais realista do que o rei" - não hesitou em cometer dois crimes conexos para tentar desqualificar o principal contestador de Palocci - o ex-caseiro da mansão, Francenildo Costa. E, fazendo o que sempre fez quando apanhado praticando malfeitorias, iniciou uma operação-abafa - mais uma! - para disfarçar a gravidade dos delitos, enquanto o presidente Lula, fiel ao imutável script, clama por "punição exemplar" do seu autor.

Os crimes conexos, evidentemente, foram o de romper o sigilo bancário do denunciante do ministro e passar à imprensa o produto da violação - o extrato que registrava depósitos em dinheiro na conta poupança de Francenildo na Caixa Econômica Federal. Os delinqüentes não tiveram nem o cuidado elementar de recorrer a um araponga para apurar se a sua vítima não teria uma explicação fundamentada para a origem do dinheiro, capaz de desmontar, como de fato desmontou, a caluniosa patranha de que o ex-caseiro foi subornado pela oposição para acusar Palocci, como uma espécie de tiro de partida da campanha contra a reeleição de Lula. Nem tendo tropeçado mais uma vez na sua patética incompetência, o oficialismo se deu por vencido. Só na segunda-feira, três dias depois de vir à luz a sordidez, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, assumiu a protocolar expressão corporal de indignação com a ignomínia. E só então o presidente da Caixa, o petista Jorge Mattoso, subordinado direto do titular da Fazenda, admitiu que a quebra clandestina do sigilo só pode ter sido obra de alto funcionário da Caixa e anunciou uma sindicância para apurar o nome do criminoso - com prazo de 15 dias!

Mas o que torna tudo "mais péssimo", como talvez dissesse o presidente Lula, é o tom geral das manifestações de autoridades e políticos petistas, demonstrando que eles nada aprenderam com o Waldogate e o mensalão. Primeiro, sempre que podem, substituem a palavra violação pelo termo mais brando vazamento - repetindo a malandragem de trocar caixa 2, expressão já de si usada para encobrir compra de políticos, pelo eufemismo "recursos não contabilizados". Segundo, quando não podem fugir do termo incriminador, fazem mais do mesmo: se apressam a aduzir que vazar documentos é costume corriqueiro, como a contabilidade paralela dos políticos. Por fim, sacam da teoria da maçã podre: assim como Waldomiro Diniz, o assessor parlamentar do ministro José Dirceu, era um isolado fruto estragado na frondosa árvore ética do PT - e assim também seriam o seu então tesoureiro Delúbio Soares e o secretário Silvio Pereira -, quem tentou destruir a reputação de Francenildo foi uma ovelha negra, como as que existem nas melhores famílias.

A ficção omite que, já na noite anterior à da sua divulgação na internet, o extrato foi visto passando de mão em mão na assessoria do ministro Palocci. Saiu dali, com toda a probabilidade, a decisão de fazer chegar o papel a um semanário. De todo modo, se alguém da alta hierarquia do poder petista quisesse impedir o desdobramento da abjeção cometida na Caixa Econômica, ocasião não faltou. A esta altura, só um néscio duvidaria de que a mais recente baixaria do governo envolveu diversas pessoas em posição de levá-la adiante ou de abortá-la, mesmo assumindo, para argumentar, que se tratou de uma iniciativa individual. A desfaçatez chegou a ponto de a líder do PT no Senado, Ideli Salvatti, pedir para ver as imagens do sistema de segurança no Congresso dos últimos 15 dias, na esperança de flagrar Francenildo com algum parlamentar da oposição. Foi desautorizada pelo companheiro Aloizio Mercadante.

Se isso não configura uma situação péssima, a palavra não quer dizer mais nada.