Título: China enfrenta seu protecionismo
Autor: Kathy Chen
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/04/2006, Economia & Negócios, p. B5

Quando o presidente da China, Hu Jintao, visitar os Estados Unidos nos próximos dias, certamente deve responder perguntas difíceis sobre o comércio e as políticas econômicas do país em meio a uma onda de crescente protecionismo. Mas ele também está lutando com um revés parecido em casa.

Em um dos períodos de crescimento mais duradouros e acelerados de todas as economias modernas, a China está se debatendo com preocupações que vão desde o aumento da diferença de riqueza aos danos ao meio ambiente, passando pela corrupção. Porém, o último clamor se voltou contra os estrangeiros, visando aos muitos investidores do exterior que se mudaram para a China e prosperaram, mesmo que ao mesmo tempo fomentassem muito do crescimento do país.

"Desde o ano passado, as empresas estrangeiras compram ferozmente companhias chinesas, incluindo algumas companhias essenciais", disse Li Shuguang, da Universidade Chinesa de Política e Direito de Pequim. "O capital estrangeiro é tão forte que muitas empresas chinesas faliram."

O debate assemelha-se ao ressurgimento do sentimento de protecionismo nos EUA, que tem sido impulsionado em parte pela preocupação com o cacife da China. No ano passado, a empresa estatal chinesa Cnooc desistiu da licitação para comprar a empresa Unocal, com sede nos EUA, em meio a um clamor político. Mais recentemente, mentores da política americana reclamaram que a China está se recusando a permitir que sua moeda, o yuan, seja valorizada com a necessária rapidez, promovendo uma avalanche de exportações baratas chinesas e agravando o desequilíbrio da balança comercial.

Em 2005, os EUA registraram um déficit comercial com a China de US$ 201,62 bilhões, um aumento de mais de 20% ante 2004. A China, que contabiliza o comércio de forma diferente, diz que foi muito menor.

Há poucos dias, os Estados Unidos e a União Européia deram entrada num processo comercial na Organização Mundial do Comércio (OMC) para protestar contra as tarifas de importação da China sobre peças automobilísticas de fabricação estrangeira.

Neste ínterim, o debate dentro da China está fazendo com que o governo repense sua abordagem. No setor bancário, por exemplo, alguns economistas e autoridades estatais argumentam que o governo vendeu muito barato participações acionárias de firmas estrangeiras em seus principais bancos comerciais controlados pelo Estado. Algumas negociações, incluindo uma tentativa liderada pelo Citigroup para assumir uma participação acionária de 85% no Banco de Desenvolvimento de Guangdong, se arrastaram durante meses, pois os responsáveis pela regulamentação temem os possíveis resultados desfavoráveis de mais incursões da parte de estrangeiros.

O que também atrai atenção é a oferta de US$ 375 milhões do Carlyle Group, uma importante empresa financeira com sede nos EUA, por uma participação acionária de 85% na empresa estatal Xugong Group Construction Machinery, uma grande participante do setor de maquinário de construção da China. "As pessoas estão fazendo mais perguntas (sobre a transação) para se assegurarem de que existem medidas suficientes para proteger os interesses dos participantes locais e proteger as marcas nacionais, o que é compreensível", disse uma pessoa familiarizada com a transação.

Em um outro caso, A Hangzhou Advance Gearbox Group, fabricante de sistemas de propulsão a jato marítimos que alega ter 80% dos mercados chinês e do Sudeste Asiático, disse que suspendeu as conversações com o ZF Group da Alemanha no final do ano passado por causa de preocupações sobre suas motivações. O ZF Group, concorrente da Hangzhou Advance, manteve conversações por três anos para aquisição de uma participação acionário de 70% na estatal chinesa. "Entendemos que o que essas empresas estrangeiras realmente cobiçam é o mercado chinês que nós agora ocupamos", disse Xu Jiangang, diretor de Assuntos Gerais da Hangzhou Advance.

Recentemente, a controvérsia estendeu-se à opinião pública. Este mês, representantes da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês, uma entidade representativa nacional com poderes restritos, aproveitou os boatos sobre uma transação envolvendo a Caterpillar para reclamar da dominação estrangeira em alguns setores e do desaparecimento de marcas chinesas.

A Caterpillar recusou-se a fazer comentários sobre essa transação, mas um porta-voz repudiou as preocupações mais amplas da China, acrescentando que um movimento da parte dos Estados Unidos ou da parte da China para "fechar-se em si não é uma boa coisa". Entre uma gama de possíveis transações, a Caterpillar tem estado em conversações para estreitar os laços com a Shanghai Diesel Engine.

A concentração de indústrias em mãos estrangeiras se converteu num assunto comum. Por exemplo, um freqüentemente citado relatório de 2004 da Administração Estatal de Indústria e Comércio observa que a Coca Cola domina o mercado chinês de refrigerantes e que a Eastman Kodak detém uma parcela de 50% do setor de filmes.

Numa reunião com editores de jornais no início deste mês, Ma Kai, diretor da mais poderosa agência econômica da China, a Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma, observou que somente 23 empresas americanas estavam operando na China em 1980, com investimentos conjuntos de US$ 120 milhões. Já no ano passado, disse ele, havia 49 mil empresas americanas na China, com investimentos conjuntos de US$ 51 bilhões. "Devemos primeiramente deixar claro que os Estados Unidos têm se beneficiado deste crescimento", disse.

Poucos esperam um recuo significativo do impulso de 27 anos da China na direção de um sistema comandado pelo mercado. O país já lidou com o questionamento fundamental do papel das reformas econômicas antes, na década de 80 e no início da década de 90.

Mas as últimas crises de reforma da China poderão enfraquecer a capacidade de Hu - e seu apetite - para tratar de questões de interesse dos EUA na sua visita. Ele planeja se reunir com Bush e provavelmente trará algumas propostas, possivelmente incluindo um contrato do governo para o software da Microsoft. Mas é improvável que ofereça muito do que Washington deseja, tal como permitir que o yuan se valorize mais abruptamente.

CONFLITO DE INTERESSES Em certos aspectos, Hu, de 63 anos, enfrenta uma situação mais complexa que seus antecessores no momento em que a China fica mais parecida com os EUA, com uma maior tolerância a opiniões dissidentes e grupos de interesse organizados. A resistência a algumas mudanças voltadas para o mercado é em grande parte comandada por interesses especiais, como os agricultores que não têm representatividade, empresários privados e ministérios que tentam agarrar-se a seus poderes. Na reunião de março do legislativo nacional, o lobby da parte de grupos de interesse aumentou notavelmente.

Entre as mais de mil propostas de leis apresentadas por delegados havia várias destinadas a restringir o acesso externo aos mercados domésticos. Wang Tian, um delegado da província sulista de Hunan que administra a própria cadeia de lojas, apresentou projeto de lei de salvaguarda de comércio de serviços que protegeria as empresas chinesas nos setores de varejo, financeiro e de serviços.

"Quase todos os supermercados numa área de 10 mil m2 em províncias litorâneas são dominados pelo Carrefour, Wal-Mart e Metro e os muitos restantes (de propriedade chinesa) estão em conversações com varejistas estrangeiros", disse Wang, referindo-se respectivamente às cadeias de varejo francesa, americana e alemã.

Enquanto isso, a Comissão de Supervisão e Administração de Ativos de Propriedade do Estado, que supervisiona as principais empresas controladas pelo Estado, e outros órgãos estão trabalhando em diretrizes para regular fusões e aquisições de firmas chinesas com marcas conhecidas ou com parcelas significativas do mercado. A Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma informou que um alvo da regulamentação serão os estrangeiros.

"O investimento externo tem desempenhado um papel atuante em dar um empurrão em ativos ociosos do governo, otimizar a estrutura industrial e promover o progresso tecnológico, mas também tem causado graves problemas como a parcelas de mercado excessivamente concentradas em alguns setores", disse o porta-voz da comissão numa resposta por escrito.

Durante a última crise por causa da economia no país, no início da década de 90, os principais críticos das mudanças no mercado foram outras autoridades de alto escalão que acreditavam que o capitalismo era ruim para a China.

O falecido Deng Xiaoping, então o líder supremo, acabou com a oposição em 1992 numa abrangente turnê pelo sul da China, onde o livre mercado estava florescendo e progredindo. Como Deng, Hu e o primeiro-ministro Wen Jiabao pediram que a China apoiasse as reformas. Em entrevista coletiva depois da reunião do Parlamento em março, Wen fez uma rara aparição na televisão. "Temos de continuar resolutamente no caminho da reforma. Voltar atrás não oferece nenhuma saída."

Ao mesmo tempo, há alguns sinais de indecisão do governo. No ano passado, quando os responsáveis pela regulamentação de títulos mobiliários propuseram o congelamento de aplicações estrangeiras para estabelecer empresas joint venture de valores mobiliários, o Conselho Estatal, ou gabinete, solicitou a opiniões de outros órgãos.

Porém, quando esses órgãos discordaram, o conselho não emitiu uma determinação, dessa forma permitindo que os responsáveis pela regulamentação implementassem o congelamento em dezembro último, segundo um ex-funcionário do alto escalão.

Em alguns casos, os lobistas estão fazendo uso da mídia para conquistar a atenção do governo chinês. Lu Yansun, um ex-vice-ministro do extinto Ministério da Indústria de Fabricação de Máquinas, ficou enfurecido quando leu um pequeno artigo sobre o destino da empresa controlada pelo Estado Xibei Bearing, uma lucrativa companhia de rolamentos para trem. A Xibei costumava ter uma parcela de 25% do mercado da China e sua marca própria, a NXZ, desapareceu do setor depois que a empresa foi vendida para a fabricante alemã de rolamentos INA-Holding Schaeffer KG, em 2003.

Lu Yansun sugeriu que o China Industry News, um jornal afiliado à semi-oficial Federação da Indústria de Maquinário da China, investigasse. O resultado foi uma série de artigos acusando investidores estrangeiros - incluindo a Caterpillar e a fabricante americana de equipamentos para agricultura Deere & Co. - de terem assumido empresas-chave no setor de bens de capital somente para eliminar as marcas e tomar parcelas do mercado.

Lu e He Guangyuan, um ex-ministro da indústria de maquinário, também escreveu uma carta para o Conselho Estatal. Lu disse que vários líderes importantes responderam que "deveriam ser estabelecidos um conjunto de normas administrativas".

Em fevereiro, o conselho emitiu uma série de políticas para apoiar o setor, incluindo uma resolução que decretava que equipamentos de fabricação doméstica devem responder por 60% das compras totais de equipamentos para projetos chave financiados pelo governo central ou por governos locais.

Este mês, o vice primeiro-ministro, Zeng Peyan, disse que o gabinete emitirá um conjunto de políticas preferenciais para rejuvenescer o setor, refletindo a "vontade nacional", segundo a agência oficial de notícias Xinhua.