Título: O PSDB de calças curtas
Autor: Ivan Carvalho Finotti
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/03/2006, Aliás, p. J4

Anunciada na terça, decisão por Alckmin como candidato expõe mudanças no partido

A direção do PSDB foi pega desprevenida. Esse é o resumo da análise que o cientista político Bolívar Lamounier faz a respeito do imbróglio que o partido viveu nos últimos tempos. Uma foto publicada há um mês virou a imagem da disputa entre José Serra e Geraldo Alckmin para ser o candidato do PSDB à Presidência da República.

Nela, Serra aparece no restaurante Massimo ao lado dos líderes Fernando Henrique Cardoso, Tasso Jereissati e Aécio Neves, depois de jantarem cordeiro com vinho. Geraldo Alckmin, que afirmou não ter sido convidado pelo quarteto e por isso não está na foto, naquele momento comia churrasco com chope em uma homenagem a um deputado.

Interpretação possível: enquanto os caciques jantavam num dos restaurantes mais chiques de São Paulo, Alckmin fazia seu trabalho de operário político, confraternizando em diretórios regionais e convencendo o baixo clero do PSDB a apoiá-lo. "Essa imagem tem uma conotação de elite que acho um pouco malévola. Agora, ela é correta no sentido de que a direção talvez tenha acreditado excessivamente numa decisão por consenso", admite o pensador Lamounier.

Primeiro diretor-presidente do Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo (Idesp), um dos principais órgãos de pesquisa sociopolítica do Brasil, e doutor em Ciência Política pela Universidade da Califórnia, Bolívar Lamounier é autor de livros como Os Partidos e as Eleições no Brasil (em co-autoria com Fernando Henrique Cardoso, Paz e Terra, 1975) e Da Independência a Lula: Dois Séculos de Política Brasileira (Augurium Editora, 2005). Na quinta-feira, ele recebeu o Aliás em sua casa para a seguinte entrevista.

O que aconteceu com o PSDB nesse processo de escolha de Alckmin para candidato à Presidência?

Primeiro, a coincidência de estarem disputando a vaga dois nomes fortes, com perfil semelhante e muito experiência administrativa. José Serra já foi ministro duas vezes e Geraldo Alckmin governa o Estado de São Paulo, que é do tamanho da Argentina. É uma situação de empate quanto às credenciais. O fator que pesava mais para um lado, as pesquisas, pode não ter tanta importância assim, já que ainda estamos em março. Em segundo lugar, os partidos do Brasil, não só o PSDB, estão acostumados a não ter disputa. Desde o final dos anos 80, o PSDB e o PT tiveram candidatos naturais. Lula sempre foi o candidato do PT e, no caso do PSDB, tivemos Mário Covas e depois Fernando Henrique duas vezes. Não havia disputa. O PMDB e o PFL não competiram para valer no nível presidencial. Então, os quatro principais partidos não tiveram disputas internas. Mas isso é uma coincidência. O normal é que haja. Nos Estados Unidos vemos sempre isso.

O senhor acha que Serra e Alckmin são candidatos semelhantes?

Há quem diga que Alckmin tem um discurso mais à direita porque fala na família. Serra também valoriza muito a família, mencionou isso na campanha de 2002. Nesse ponto não vejo diferença nenhuma. Em relação à política econômica, ambos defendem uma economia de mercado aberta, a importância do controle da inflação, e não são liberais dogmáticos, que entendem a economia como um livro-texto, mas são pragmáticos. Do ponto de vista social, são rigorosamente iguais, enquadráveis na descrição de diminuir a desigualdade na medida do possível, na velocidade possível, com boas políticas sociais por meio de instrumentos idôneos, não de assistencialismo e populismo. Tanto um como outro dão prioridade número um à educação e à saúde. Um e outro, se pudessem, fariam uma revolução educacional no País. Onde está a diferença? Sinceramente não a vejo.

Uma imagem irresistível dessa disputa é que, enquanto os caciques jantavam no Massimo, Alckmin fazia um trabalho de formiguinha. O senhor concorda?

Essa imagem tem uma conotação de elite que não acho correta. Não acho que Fernando Henrique, Tasso Jereissati e Serra sejam elitistas, então essa imagem é um pouco malévola nesse sentido. Agora, ela é correta no sentido de que a direção talvez tenha acreditado excessivamente numa decisão por consenso. Que poderia acontecer num restaurante, não necessariamente no Massimo.

Mas, quando o senhor diz consenso, significa a opinião desses líderes.

Não, não. Alckmin sempre foi consultado. O fato de ele não estar naquela noite no restaurante não significa que não estivesse sendo levado em conta. Daí a imagem ser um pouco malévola. Mas talvez isso tenha pegado o PSDB um pouco desprevenido, realmente. A direção do partido talvez tenha estado um pouco distraída quanto a esse ponto e não cuidou com antecedência da hipótese de haver uma disputa. Nesse caso, seria necessária uma consulta ao Diretório Nacional. Não haveria dificuldades, mas simplesmente não se atinou para essa possibilidade. Tentou-se um candidato de consenso. O consenso não funcionou, não houve acordo, e foi preciso prolongar, postergar demais, o que acabou sendo desgastante. Esse processo tem o seu lado ruim, mas para Alckmin vejo um lado bom, porque ele precisa se tornar mais conhecido em nível nacional e a disputa de certa maneira já o fez. E já o apresentou numa atitude que é a dele, de um homem enérgico, que não cede facilmente, de um político experimentado e determinado, ao contrário da imagem que se tinha feito dele, que era o chuchu.

Tudo isso denota uma mudança no PSDB?

Acredito que sim, mas não só no PSDB. Acho que é uma mudança na política nacional. Estamos numa entressafra de lideranças. As lideranças de 1964, que resistiram ao período militar e se formaram e se projetaram naqueles 20 anos, essa geração está saindo. Serra é, de certa maneira, o último dos moicanos. Fernando Henrique também. Mário Covas já se foi, Franco Montoro, Ulisses Guimarães, Teotônio Vilela, Tancredo Neves, muitos já saíram de cena. Lula também é dessa geração, é o último moicano no PT, onde também deverá haver uma renovação. Não há mais nenhum outro grande personagem de grande destaque para ser candidato à Presidência. Isso significa que Alckmin, dez anos mais jovem que Serra, já representa outra geração. E, possivelmente, outra maneira de fazer política dentro da mesma ideologia, da mesma visão de mundo.

O senhor acredita que Serra perdeu o timing?

Vou dar uma de tucano aqui: é uma interpretação plausível, uma interpretação plausível... Agora, vamos ver a coisa do ponto de vista dele. Ele está na Prefeitura de São Paulo, sabe que há uma parte do eleitorado com expectativa de permanência dele. Ele não poderia saber de antemão qual era a intensidade da pretensão de Alckmin e deixou as coisas serem filtradas para se posicionar.

Serra é o perdedor dessa situação?

Não vejo as coisas assim. Ele não quis arriscar uma divisão grande no partido. E, em vez de ser um limão, isso pode ser uma limonada para o PSDB. Se ele se candidata ao governo do Estado, que eu não sei se ele está considerando, há vários pontos positivos. Em primeiro lugar, porque manteria o compromisso de permanência, pois estará em São Paulo, em contato diário com a Prefeitura. Em segundo, porque entraria no mínimo em pé de igualdade com os principais candidatos do PT. Isso daria uma força muito grande à chapa do PSDB, já que São Paulo tem 27 milhões de votos, 23% ou 24% do eleitorado nacional.

Como tornar Alckmin um político de projeção nacional? Talvez servindo buchada de bode?

É até engraçado, uma brincadeira, essa buchada de bode que Fernando Henrique comeu. Fernando Henrique não é elitista, mas tem uma formação de elite. É um sociólogo de padrão internacional, um outro tipo de cultura. Então, aquilo foi um símbolo de popularização da imagem dele. Alckmin não precisa disso. Ele é um homem popular, de Pindamonhangaba, médico. Para ele, ir à periferia ver a situação de um posto de saúde não é imagem. Isso é muito natural na figura dele. Conseqüentemente, penso que vai viajar muito pelo Brasil e essas situações provavelmente vão ocorrer, e não vejo nenhum artificialismo nelas.

Qual será a tônica desta campanha? A crise do mensalão? O debate econômico? Emprego?

Vejo algumas áreas fundamentais. Penso que o governador Alckmin vai dizer que o governo Lula não teve nenhuma política econômica. Ele deu continuidade, piorando um pouco, à política monetária necessária no governo anterior para estabilizar a moeda. Não soube como sair dela. O crescimento foi totalmente puxado por circunstâncias externas benignas. Se fossem circunstâncias adversas, e com a crise de corrupção interna, o governo teria passado por muitos maus momentos. Na área da política social, o que o PT tem para apresentar é o Bolsa-Família. Não quero desmerecer, mas é um programa que deveria ter caráter emergencial, e caráter emergencial para 11 milhões de pessoas soa um pouco eleitoreiro. Mas, enfim, é pouco para um partido que tem essa marca. Há ainda a área da gestão pública, a qualidade administrativa. Aí ninguém discorda que o governo Lula é um desastre. Tudo funciona muito mal. Agora, vai se deixar de lado a questão do mensalão e da corrupção? Acho que não. Não acho que seja a prioridade para o eleitor das classes C e D, mas evidentemente é de suma relevância para o País.

Lula tem apanhado há cerca de um ano, tem um filho envolvido em suspeita de favorecimento, ministros derrubados, deputados em processo de cassação. Entretanto, a última pesquisa o coloca como possível vitorioso em primeiro turno contra Alckmin. Por que isso acontece?

Acho que são três fatores que se somam. Primeiro, Lula teve uma tática de se desvencilhar do PT, de que o PT o traiu. Não muita gente acreditou nessa história, mas deram-lhe o benefício da dúvida porque na verdade o Lula vitorioso, o Lula presidente, é uma criação não só PT, mas da sociedade brasileira inteira. Foi a sociedade brasileira que um dia disse que há muito se tinha uma estratificação social não muito boa, uma distribuição de renda muito ruim, as pessoas que vêm de baixo com muito poucas oportunidades. Então aqui está uma pessoa realmente meritória, um belo símbolo, que vem lá do Nordeste, que tem uma vida política muito determinada, por que não se elege esse homem que já tenta pela quarta vez a Presidência da República? A eleição de 2002 foi isso, evidentemente que com a ajuda de Duda Mendonça nos efeitos especiais. Mas foi uma eleição que refletiu também a consciência culpada da sociedade brasileira. O segundo pilar é que a situação econômica brasileira não é desastrosa. As pessoas não estão se sentindo mal, com aquela angústia do tempo da inflação. O Bolsa-Família entra aí também. E o terceiro fato é que ele estava falando sozinho. O PMDB não tem candidato, o PFL não tem candidato e o PSDB estava em disputa interna. As pessoas que não lêem jornais todo dia, que não têm tempo ou condições de acompanhar detalhadamente a vida política, pensam que só tem Lula de candidato. Isso começou a mudar esta semana, com a indicação de Alckmin. Certamente não vai ser fácil, porque reverter um quadro é sempre muito complicado, mas a situação tende a mudar. Não ficarei surpreso se dentro de um mês, um mês e meio, essa diferença estiver reduzida.