Título: Método cubano é testado no Piauí Só alfabetizar não é suficiente para jovens e adultos
Autor: Luiz Maklouf Carvalho
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/03/2006, Vida&, p. A28

'Yo si puedo', que ensina a ler em 35 dias, já é adotado em 15 países e agora passa por avaliação do MEC

O método cubano de alfabetização de adultos "Yo si puedo" (Sim, eu posso), premiado pela Unesco em 2002 e 2003 e já utilizado por 15 países, entre eles a Venezuela de Hugo Chávez, está sendo aplicado desde outubro do ano passado em três municípios pobres do Piauí. São eles: Buriti dos Lopes (19 mil habitantes), Caxingó (4 mil) e Murici dos Portelas (6 mil). Estão na região do Baixo Parnaíba, numa média de 300 quilômetros de Teresina, e têm em comum altas taxas de analfabetismo: 48%, 36% e 64%, respectivamente, para citar apenas a faixa etária superior a 25 anos.

No começo da noite de sexta-feira, os primeiros 117 formandos receberam seus certificados em solenidade realizada na igreja matriz de Caxingó. O ministro da Educação, Fernando Haddad, foi representado pelo diretor de Educação de Jovens e Adultos do Ministério da Educação (MEC), Thimothy Ireland.

O Brasil contratou a aplicação do "Yo si puedo" em protocolo de intenções assinado com o governo cubano em 26 de setembro de 2003, pelo então ministro da Educação brasileiro Cristovam Buarque - mais tarde confirmado pelo ministro Tarso Genro. Já estava acertado que o projeto-piloto seria desenvolvido no Piauí, com a concordância do governador do Estado, Wellington Dias (PT).

Aplicado através de vídeo, com o auxílio de monitores, o método cubano ensina a ler e a escrever em 35 dias. São cinco aulas noturnas de uma hora e meia de segunda a sexta-feira. A facilidade está na técnica de associação entre números e letras. Os vídeos que estão sendo usados no Piauí foram gravados em Cuba por brasileiros lá residentes ou artistas brasileiros que quiseram colaborar, como o ator Chico Diaz, que é o principal apresentador.

O cenário é uma sala de aula onde os atores-alunos fazem perguntas estimulantes ao ator-professor. Cuba doou os 50 jogos que estão sendo utilizados no Piauí, cada qual com 17 fitas.

No momento, 236 alunos (ou 29 turmas) estão cursando as aulas noturnas do "Sim, eu posso" nos três municípios. A meta é formar mil alunos até o fim de junho.

AVALIAÇÃO

A continuidade e a conseqüente ampliação do projeto vão depender da avaliação de eficácia que o MEC começou a fazer na sexta-feira. Já estava lá, desde a quinta-feira, o vice-cônsul cubano Adolfo Núñez Fernández, lotado no consulado de São Paulo.

"Temos todo o interesse em ajudar o Brasil a erradicar o analfabetismo, mas tudo vai depender da avaliação que o governo brasileiro está fazendo", disse Fernández ao Estado no começo da noite da quinta-feira.

A maior torcida por uma avaliação positiva é a do professor cubano Carlos Martinez Mollineda, de 46 anos. Na prática, é ele o principal responsável pela implantação do projeto. Mestre em Psicologia e Pedagogia, chegou ao Piauí em outubro do ano passado. Reside em Buriti dos Lopes, em cima de um mercadinho, e tem um carro oficial da prefeitura à sua disposição, em tempo integral. A gasolina, porém, é paga do bolso dele.

O professor Carlos, como é chamado por todos, responde, em portunhol, pela coordenação da aplicação do projeto na região. Acha, obviamente, que vai melhor do que a encomenda. E torce, é claro, pela sua manutenção e ampliação. O "Sim, eu posso" cubano-piauiense é, afinal, parte de sua tese de doutorado. Não só por isso, ele se esmera: trabalha dobrado, cobra empenho das supervisoras e monitoras que o ajudam, não esmorece com as dificuldades e não se conforma com atrasos de mais de cinco minutos.

"O programa 'da Cuba' é realmente eficaz", acha a prefeita peemedebista de Buriti dos Lopes, Ivana Fortes, com a visão de uma administradora de empresas. Ela só fala 'da Cuba'. O prefeito tucano de Caxingó, Raimundo Nonato Sobrinho, um ex-analfabeto que aprendeu por conta própria sem nunca ter pisado numa escola, elogia o esforço de Carlos mas não é tão otimista quanto sua colega. "Os alunos acabam esquecendo", diz. "Se não houver continuidade do aprendizado, com outros programas, eles vão realmente esquecer", concorda o professor Carlos. Do ponto de vista pedagógico, o ideal é que após a alfabetização no "Sim, eu posso" os alunos matriculem-se nos programas de educação de jovens e adultos (EJA, leia texto ao lado).

É o caso, em Buriti, da agricultora e dona de casa Luzia Gomes Pereira, de 44 anos, formada nas primeiras turmas e hoje aluna de um EJA. A reportagem pediu que ela lesse trechos de um jornal local e escrevesse algumas palavras. Fez as duas coisas com as dificuldades naturais de quem está começando e ainda escreve, por exemplo, "futibou". Informada do erro formal, diz: "Mesmo assim já é muito para quem estava no escuro". De fato.

Em Caxingó, Maria José do Nascimento, de 48 anos, mostra primeiro a casa simples e a roça de onde tira o sustento. Depois é que exibe o soletrar e os traços do lápis. "Agora ficou mais difícil pra eu ser enganada", diz.

Sua colega também recém-alfabetizada Maria Moraes da Conceição, de 61 anos, acha que o método "é fácil de aprender" e que freqüentar as aulas noturnas "é um divertimento".

A reportagem esteve em uma delas, em Murici dos Portelas, na noite da última quarta-feira. Os olhos de 11 alunos, jovens e adultos, estavam cravados no aparelho de TV. Era a noite da letra "R". A concentração de Firmina Brandão Pereira, de 66 anos, era a mesma de Rafael Gomes, de 14. Firmina é avó da monitora Francisca das Chagas Pereira de Araujo, de 23 anos. Como as demais monitoras do "Sim, eu posso", ela recebe R$ 120 mensais e mais R$ 7 por aluno. "Hoje em dia, quem não sabe ler não está valendo nada", diz Firmina, a avó, entre o rabisco difícil do ra-re-ri-ro-ru.

Não tendo com quem deixar os filhos e o neto, Marluce Maria da Silva Pereira, de 40 anos, leva todo mundo. O neto Daniel, que vai fazer 2 anos, chupeta na boca, fica sentadinho e quietinho no braço da cadeira. Os filhos, Maria Madalena, de 14, e Bernardo, de 10 anos, que estudam de dia na escola municipal, ficam observando o vídeo e o esforço da mãe. Com desembaraço, didática e paciência, a boa voz da monitora Francisca vai repetindo o que Diaz e seus colegas estão ensinando na TV. "Essa turma é esforçada", diz a neta de Firmina.

O professor Carlos é que treina e escolhe os monitores, um por turma, e os três supervisores, um por município - seus parceiros na aplicação do método cubano. No balanço que fizeram até aqui, a ser ou não ratificado pelo MEC, o desafio principal é melhorar os índices de freqüência. Na maioria dos casos, as faltas ou desistências são explicadas pelas dificuldades da vida dura.

A supervisora do programa em Murici dos Portelas, Mariana Ferreira Sales, de 26 anos, conta que todos se esforçam pela manutenção dos alunos. "Vamos nas casas, conversamos, insistimos", explica.

Todos eles sabem, Carlos em especial, que o futuro do "Sim eu posso" piauiense-cubano está sendo resolvido com a avaliação ministerial em curso. Avaliação em que vai ter algum peso a posição do governo do Estado, francamente favorável à continuidade e à ampliação do projeto.

Só alfabetizar adultos não é suficiente. Sem a continuidade dos estudos, pode-se voltar a ser analfabeto ou tornar-se um analfabeto funcional, aquele que não entende o que lê. Essa continuidade é chamada de Educação de Jovens e Adultos (EJA) e substituiu o antigo supletivo. Hoje, são cerca de 5 milhões de alunos - eles cursam as oito séries do ensino fundamental em dois anos e meio. O País tem cerca de 33 milhões de analfabetos funcionais.

A grande dificuldade ainda hoje é a estrutura dos municípios para a educação de adultos. Só em 2005, o Ministério da Educação (MEC) passou a financiar qualquer cidade que organizasse classes de EJA. A maior ONG do setor, a Alfabetização Solidária, intensificou neste ano a capacitação de professores para trabalharem na EJA. "Não adianta só pegar um professor que dá aulas para crianças e colocar para ensinar adultos", diz a superintendente da ONG, Regina Esteves. Entre outras coisas, os profissionais precisam levar em conta o universo do adulto e aprender a metodologia de aceleração do ensino.