Título: Anatomia da parceria EUA-Índia Artigo
Autor: Henry Kissinger
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/03/2006, Internacional, p. A22

A visita do presidente George W. Bush à Índia, no início deste mês, levou as relações entre os EUA e a Índia a um nível sem precedentes de cooperação e interdependência. É estranho que esta relação tenha levado tanto tempo para se desenvolver. Ambos os países são democracias. O inglês é a língua instrumental da Índia e as classes instruídas o falam com um floreio retórico. A burocracia indiana é bem preparada e competente, embora lenta. Mesmo assim, até muito recentemente, as relações entre essas duas grandes democracias eram de cautela. É importante entender os motivos se a nova relação quiser perceber claramente a oportunidade que tem diante de si.

A Índia ficou em cima do muro nas crises da guerra fria, em nome de um não-alinhamento que proclamava a equivalência moral dos dois lados; nas questões mais concretas, ela tendia para o lado soviético ou permanecia a distância.

A atitude dos EUA em relação à Índia também foi permeada pela ambivalência - oscilando entre o respeito pela qualidade moral dos líderes indianos e a irritação com as táticas indianas do dia-a-dia. As instituições democráticas que os dois países compartilhavam não determinaram escolhas políticas.

Se a emergente parceria quiser prosperar, ambos os lados precisam entender o que os juntou além de suas instituições domésticas.

Os americanos pensam em seu país como "a cidade cintilante na colina"; suas instituições políticas são percebidas como singulares e relevantes para o restante do mundo, como garantias da paz universal. Cruzadas em nome da democracia têm sido implícitas no pensamento político americano e explícitas na política americana periodicamente desde Woodrow Wilson - e especialmente pronunciadas no governo de George W. Bush.

Não é dessa forma que os indianos enxergam seu papel internacional. A sociedade hindu também se considera singular, mas, de certa maneira, drasticamente distinta dos EUA. A democracia não é concebida como uma expressão da cultura indiana, mas como uma adaptação prática, o meio mais eficiente de reconciliar os componentes poliglotas do Estado que estão emergindo do passado colonial.

O aspecto determinante da cultura indiana tem sido o admirável feito de manter a identidade indiana através de séculos de domínio estrangeiro sem, até recentemente, o benefício de um Estado unificado, especificamente indiano.

Hunos, mongóis, gregos, persas, afegãos, portugueses e, por último, bretões, conquistaram territórios indianos, estabeleceram impérios e depois foram embora, deixando para trás multidões agarrando-se a sua impermeável cultura hindu. A religião hindu não aceita convertidos. Ou você nasce nela ou lhe são negados para sempre seus rigores e seus consolos.

A Índia não luta para disseminar sua cultura nem suas instituições, portanto não é uma parceira muito conveniente para missões ideológicas globais. O que ela analisa com grande precisão são os requisitos para sua segurança nacional. E esses devem mais às noções tradicionais de equilíbrio e interesse nacional - em parte um legado do controle britânico - do que a debates ideológicos.

A Índia busca uma margem de segurança dentro da qual sua cultura possa florescer e suas nacionalidades poliglotas trabalhem em conjunto para fins práticos. Isso tem gerado vários níveis de envolvimento indiano em questões internacionais.

No que diz respeito a seus vizinhos imediatos e Estados menores como Butão, Sikkim, Nepal, Sri Lanka e até Bangladesh, a política indiana tem sido parecida com a Doutrina Monroe dos EUA no Hemisfério Ocidental - ou seja, uma tentativa de manter a hegemonia indiana, se necessário pelo uso da força.

No norte, a Índia depara-se com o gigante chinês do outro lado da barreira do Himalaia e do maciço tibetano. Neste caso, a Índia tem usado o tradicional remédio de uma grande potência confrontada por um rival equivalente - um cinto de segurança contra a pressão militar.

Nem a China nem a Índia até agora se engajaram numa rivalidade diplomática ou de segurança em relação à predominância no coração da Ásia. Num futuro previsível, ambos os países, embora protegendo seus interesses, têm muito a perder com um confronto geral.

Muitas vezes a política dos Estados Unidos em relação à Índia é justificada como uma forma de conter a China. Mas a realidade tem sido que, até agora, tanto a Índia como os EUA descobriram ser do seu interesse manter uma relação construtiva com a China.

Certamente a estratégia global dos Estados Unidos se beneficia com a participação indiana na construção de uma nova ordem mundial. Mas a Índia não servirá como um escudo dos EUA em relação à China e se ressentirá de quaisquer tentativas de usá-la nesse papel.

Na região entre Calcutá e Cingapura, a Índia busca um papel compatível com sua importância econômica, política e estratégica.

A Índia sabe muito bem que o futuro do Sudeste Asiático será determinado por relações econômicas e políticas nas quais China, EUA, Japão e Índia serão os principais agentes. Um Associação de Países do Sudeste Asiático em evolução é, ou deveria ser, do interesse comum deles. As tentativas de hegemonia tendem a levar a pressões contraproducentes. Aqui os interesses americanos e indianos são - ou se pode fazer com que se tornem - bastante congruentes.

Na região entre Bombaim e Iêmen, os interesses indianos e americanos em derrotar o islamismo radical são quase paralelos. Até o 11 de Setembro, a governança no mundo islâmico estava em grande parte nas mãos de autocratas. Os líderes indianos usavam o não-alinhamento para aplacar sua minoria muçulmana por meio da cooperação com os autocratas muçulmanos.

Mas essa situação deixou de existir. Os líderes indianos sabem que a jihad fundamentalista quer radicalizar as minorias muçulmanas, corroendo sociedades seculares por meio de atos de terrorismo.

Os líderes indianos contemporâneos já entenderam que, se esta demonstração de inquietude global se espalhar, mais cedo ou mais tarde a Índia irá sofrer ataques semelhantes. Nesse sentido, mesmo que a Índia tenha preferido outros campos de batalha, o desfecho da luta dos americanos contra o terrorismo está relacionado com a segurança de longo prazo da Índia.

Os Estados Unidos estão travando algumas das batalhas da Índia, e os dois países têm objetivos paralelos mesmo quando suas táticas diferem.

Surgiu, também, uma confluência geopolítica de interesses. A Índia conseguiu adotar o papel de equilibrista durante a guerra fria porque o conflito entre os EUA e a União Soviética ameaçava a Índia apenas indiretamente. Mas, atualmente, a Rússia não é mais uma superpotência nem uma adversária dos Estados Unidos.

A China emergiu como um grande e cada vez mais importante ator geopolítico, com consideráveis laços com os EUA - especialmente no campo econômico. Com o surgimento de um Japão mais assertivo como aliado dos Estados Unidos, a atitude da época da guerra fria de distanciamento indiano em relação aos EUA - assim como as atitudes históricas do Partido do Congresso - corre o risco de levar ao isolamento da Índia na nova configuração de poder e influência no mundo.

A globalização reforçou os incentivos para cooperação. Durante grande parte da década de 1990, um combinação de burocracia e protecionismo da Índia restringiu os investimentos privados no país. Na última década, administradores com a mente voltada para reformas provenientes dos dois grandes agrupamentos políticos indianos têm cada vez mais conectado a Índia à economia mundial.

Conseqüentemente, líderes indianos terão de lidar cada vez mais com o dilema básico da globalização, que é o seguinte: a globalização freqüentemente impõe sacrifícios desiguais - seus benefícios e custos afetam os diferentes elementos da sociedade de forma distinta.

Os perdedores nesse processo vão querer uma compensação por meio de seu sistema político, que é nacional. O sucesso da globalização traz uma tentação por protecionismo e a necessidade de combinar conquistas técnicas com preocupações de caráter humanitário. A Índia e os Estados Unidos têm uma chance de superar essas tentações por meio de esforços conjuntos.

Embora não tenha sido a democracia o que juntou os dois países, ela certamente facilitará sua capacidade de aperfeiçoar seu relacionamento.

As relações com o Paquistão são um caso especial. No processo de independência, a Índia britânica foi dividida entre Paquistão e Índia. Mas, como a divisão não conseguiu separar totalmente as populações muçulmana e hindu, 150 milhões de muçulmanos vivem na Índia hoje.

Os nacionalistas indianos vêem o Estado do Paquistão não apenas como retirado daquilo que consideram seu patrimônio histórico, mas também como uma desafio permanente ao Estado da Índia por implicar que os muçulmanos não podem manter sua identidade sob regime hindu.

Equilibrar o papel do Paquistão na guerra contra o terrorismo com a emergente parceria com a Índia vai exigir uma extraordinária sensibilidade, assim como uma habilidade para ter sempre presente que a obsessão nacional de cada um desses países é o outro e ambos interpretarão as ações dos EUA não pelas declarações dos americanos, mas à luz de suas próprias idéias preconcebidas.

A cooperação nuclear com a Índia deve ser considerada à luz desses princípios. Em 1998, fui contra as sanções em relação aos testes nucleares da Índia, sugerindo que a Índia deveria ser tratada como um país cujo progresso nuclear se tornara irreversível.

Nesse contexto, a cooperação nuclear com a Índia é adequada. Mas é preciso que a Índia explicite o compromisso de não disseminar materiais nucleares para outros países.

O raio de ação da cooperação nuclear deve evitar a retórica e a realidade de uma corrida armamentista nuclear na qual a China possa ser tentada a apoiar programas nucleares no Irã e no Paquistão como contrapeso.

O objetivo deve ser uma Ásia que navegue entre uma inaceitável hegemonia por parte de qualquer potência e uma inaceitável corrida armamentista que repita as tragédias da Europa, com armas mais aterradoras e conseqüências ainda mais vastas.

Numa época de preocupação com o terrorismo e o possível choque entre civilizações, o surgimento de uma cooperação entre duas grandes democracias, Índia e Estados Unidos, traz uma perspectiva positiva e esperançosa.