Título: Muçulmana se ergue contra radicais
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Fonte: O Estado de São Paulo, 19/03/2006, Internacional, p. A21

Sírio-americana recebe ameaças por suas críticas ácidas ao Islã, tema de livro em que ela questiona a religião

Há um mês, a dra. Wafa Sultan era uma psiquiatra sírio-americana pouco conhecida vivendo nos arredores de Los Angeles, nutrindo um ódio e um desespero profundos por seus semelhantes muçulmanos. Hoje, graças a uma entrevista dura e provocativa na TV Al-Jazira em 21 de fevereiro, ela é uma sensação internacional, aclamada como uma voz fresca da razão por alguns, e, por outros, fustigada como uma herege e infiel que merece morrer.

Na entrevista, que foi visitada na internet mais de 1 milhão de vezes, Wafa criticou asperamente clérigos muçulmanos, guerreiros sagrados e líderes políticos que, acredita ela, distorcem os ensinamentos de Maomé e do Alcorão há 14 séculos. Ela disse que os muçulmanos, que ela compara desfavoravelmente aos judeus, entraram numa vertigem de autopiedade e violência; que o mundo não está testemunhando um choque de religiões ou culturas, mas uma batalha entre modernidade e barbárie, batalha que as forças do Islã violento, reacionário, estão fadadas a perder. Religiosos de todo o mundo muçulmano reagiram condenando-a, e sua secretária eletrônica se encheu de ameaças. Mas os reformistas islâmicos a enalteceram por dizer, em alto e bom som, em árabe, e na TV mais vista do mundo árabe, o que poucos muçulmanos ousam dizer.

"Nosso povo é refém de nossas crenças e ensinamentos", disse Wafa, de 47 anos, em entrevista na semana passada em sua casa num subúrbio de Los Angeles. "O conhecimento me libertou desse pensamento retrógrado. Algo precisa ajudar a libertar o povo muçulmano dessas crenças equivocadas."

Suas palavras mais provocativas na Al-Jazira talvez tenham sido aquelas em que ela compara como judeus e muçulmanos reagiram à adversidade. Falando do Holocausto, ela disse: "Os judeus saíram da tragédia e obrigaram o mundo a respeitá-los com seu conhecimento, não com seu terror; com seu trabalho, não com seus choros e gritos." E prosseguiu: "Não vimos um único judeu explodir-se num restaurante alemão. Não vimos um único judeu destruir uma igreja. Não vimos um único judeu protestar matando pessoas. Somente os muçulmanos defendem suas crenças queimando igrejas, matando pessoas e destruindo embaixadas. Esse caminho não dará nenhum resultado. Os muçulmanos precisam se perguntar o que eles podem fazer pela humanidade, antes de pedirem para a humanidade respeitá-los."

Pouco depois da transmissão, clérigos na Síria a denunciaram como infiel. Um disse que ela causou mais danos ao Islã que as charges dinamarquesas zombando de Maomé.

Wafa afirma que está "trabalhando num livro que vai virar de cabeça para baixo" o mundo islâmico. "Cheguei ao ponto em que não há volta. Estou questionando cada ensinamento de nosso livro sagrado." O título provisório é The Escaped Prisoner: When God Is a Monster (O Prisioneiro Evadido: Quando Deus é um Monstro).

Wafa cresceu numa grande família muçulmana tradicional em Banias, Síria. Seguiu estritamente a religião até a idade adulta. Mas sua vida mudou em 1979, quando era estudante de medicina na Universidade de Alepo, no norte da Síria. Na época, a organização radical Irmandade Muçulmana estava empregando o terrorismo para tentar enfraquecer o governo do então presidente Hafez Assad. Ela contou que pistoleiros da Irmandade Muçulmana invadiram uma sala de aula da universidade e mataram seu professor. "Eles dispararam centenas de balas nele, gritando 'Deus é grande!'", conta ela. "Nesse ponto, perdi a confiança que tinha em seu deus e comecei a questionar todos os nossos ensinamentos. Foi o ponto de virada de minha vida. Eu tinha de sair. Tinha de procurar outro deus."

Ela e o marido, que agora usa o nome americanizado de David, fizeram planos de emigrar para os EUA. Seus vistos finalmente chegaram em 1989. Os Sultans e seus dois filhos (depois eles tiveram um terceiro) se estabeleceram com amigos em Cerritos, Califórnia. Wafa conseguiu sua licença médica americana e David opera um posto de verificação de emissão de carros. Eles compraram uma casa e puseram os filhos em escolas públicas. Todos são cidadãos americanos.

Ela começou a escrever primeiro para si mesma, depois para um site de reforma islâmica chamado Annaqed (A Crítica). O ensaio irado nesse site feito por Wafa sobre a Irmandade Muçulmana chamou a atenção da Al-Jazira, que passou a convidá-la para debates e entrevistas. "O choque que estamos testemunhando em todo o mundo não é um choque de religiões ou um choque de civilizações", disse Wafa na TV. "É um choque entre dois opostos, entre duas eras. É um choque entre uma mentalidade que pertence à Idade Média e outra mentalidade que pertence ao século 21. É um choque entre civilização e retrocesso, entre o civilizado e o primitivo, entre barbárie e racionalidade." Ela afirmou ainda que não pratica mais o islamismo: "Sou um ser humano secular."

Desde então, tem recebido numerosas ameaças de morte em sua secretária eletrônica e por e-mail. Uma mensagem dizia: "Oh, você ainda está viva? Espere e verá." Outro dia, recebeu um e-mail em árabe dizendo: "Se alguém a matar, serei eu." Ela está mais preocupada com a segurança de parentes nos EUA e na Síria do que com a própria: "Não temo nada. Acredito na minha mensagem. É como uma jornada de 1 milhão de quilômetros, e eu acredito que já caminhei os primeiros e mais difíceis 10 quilômetros."