Título: Uma década de ajuda em dinheiro e ninguém deixou de ser pobre
Autor: Adriana Carranca
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/04/2006, Nacional, p. A14

Crianças cadastradas nos programas precursores do Bolsa Família, há 11 anos, até hoje dependem dos benefícios

Desde que teve o primeiro dos cinco filhos, Teresinha Souza Lima, 34 anos , sonha em dar a eles futuro melhor do que o dela própria. Engravidou aos 15 anos, parou os estudos e passou a fazer faxina, que lhe rende R$ 30 ao dia. O que mais a entristece é ver o filho Alison, de 16 anos, voltar do serviço que faz como ajudante de pedreiro, desanimado com a falta de oportunidade melhor, apesar das duas dezenas de currículos distribuídos, impressos à custa de carregar sacos de areia e cimento. Ele cursa ainda a 6.ª série do ensino fundamental e, desde 2005, mudou para o período noturno para ter mais tempo de trabalhar.

Alison é uma das primeiras crianças beneficiadas pelos programas de transferência de renda condicionada - em que é exigida contrapartida das famílias, como freqüência escolar. Eles completam 11 anos no Brasil, em 2006 - exatamente o tempo do período escolar.

Os primeiros programas começaram em Campinas, com o prefeito tucano José Roberto Magalhães Teixeira, e no Distrito Federal (DF), com o então governador Cristovam Buarque, já com o nome de Bolsa Escola. Transformados em política federal no governo FHC, foram acrescidos dos programas de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), Bolsa Alimentação e Auxílio Gás, e unificados, no atual governo, sob o guarda-chuva do Bolsa Família.

Alison nasceu em Paranoá - cidade-satélite do DF onde os primeiros benefícios do Bolsa Escola local foram entregues, em maio de 1995 - e atravessou as três gerações de programas. Perdeu o benefício do Bolsa Família recentemente, ao fazer 16 anos. Dois dos irmãos mais novos, Paulo, de 14, e Hudson, de 8, ainda recebem. É pouco: R$ 80 para a família de seis, mas junto ao benefício de R$ 120 do Renda Minha, programa do governo do DF, e aos R$ 240 que Teresinha consegue como faxineira, ajuda bastante. Tudo é gasto na comida e nas contas da casa. "Sem o benefício, sobreviveria na medida do possível", diz Teresinha, que mora com as crianças num quarto, sala e cozinha sem reboco nem piso - o banheiro é um vaso no quintal. "Mas não deixava meus filhos fora da escola."

Como ela, Arlete Damasceno de Carvalho também é diarista. Foi umas das primeiras a receber o benefício do Bolsa Escola, em Paranoá. Os três filhos Michele, de 9 anos, Marcia, de 13, e Marciel, de 16 anos, estão atrasados nos estudos. "Eu mesmo mandei repetir porque eles não estavam aprendendo nada, como seu", diz a mãe, analfabeta funcional.

Marciel, que recebe também benefícios Peti (o Programa de Erradicação de Trabalho Infantil) desde a 1.ª série do ensino fundamental (agora está na 8.ª), faz bicos desde os nove anos, seja empacotando compras em um sacolão ou tomando conta de carros. Já se envolveu em encrencas que lhe renderam duas visitas à Delegacia da Infância e Juventude. "Eu preferia ver ele ali dependendo do suor dele, do que ele depender do suor do governo", diz a mãe, que recebe R$ 120 do Renda Minha e R$ 80 do Bolsa Família.

Selma Ferreira Rodrigues foi a primeira a receber a carteirinha das mãos do então governador do Distrito Federal, Cristovam Buarque, com direito a um salário mínimo. Onze anos depois, continua a sustentar sozinha os sete filhos, e as contas estão atrasadas desde que deixou de receber o benefício de uma ONG que lhe complementava o orçamento, junto com os R$ 45 do Bolsa Família. Como esses casos, o Estado localizou outra dezena de famílias de DF que recebem transferências desde 1995. As famílias contam histórias semelhantes. Em geral, o valor do benefício acaba incorporado ao curto orçamento familiar, alivia a pobreza, mas em nenhum dos casos emancipou as famílias ou abriu-lhes caminho para algo melhor. Em média, os benefícios representam 20% da renda das famílias, segundo Rosani Cunha, secretária nacional de renda de cidadania do ministério.

Tirado o benefício, hoje, elas voltam à situação anterior. Com mais escolas e a universalização do ensino, é difícil concluir se as crianças não seriam colocadas na escola, independentemente do pagamento de benefícios. "Transferir recursos é fácil. Difícil é construir as portas de saída", diz a pesquisadora da Unicamp Ana Fonseca, que trabalhou para o governo até 2004.

Promovidos a principal programa social do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a tendência é que assim continuem, independentemente do resultado das próximas eleições. "O retorno político é grande. Descontinuá-lo seria suicídio", diz o brasilianista Anthony Hall, diretor do departamento de políticas sociais para países em desenvolvimento na London School of Economics.

Hall acha que o Brasil pode enfrentar problemas, no futuro, se investir em transferência de renda em detrimento do fortalecimento do capital humano, como tentou fazer Lula ao retirar R$ 2,1 bilhões da saúde para o Bolsa Família no orçamento de 2006. "Sem portas de saída, como a geração de emprego e renda justa, a demanda pela assistência cresce e também a dependência", adverte ele.