Título: A revolta dos gourmets no país da mandioca
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Fonte: O Estado de São Paulo, 19/03/2006, Nacional, p. A12

Projeto que obriga adição do produto à farinha de trigo avança na Câmara

Enquanto o Congresso se agita com as CPIs e o Planalto se desdobra para manter no cargo o ministro da Fazenda, corre silenciosa nos meandros da Câmara, sem que a opinião pública perceba, a revolução da mandioca.

É um projeto de lei pelo qual a farinha de trigo nacional deverá conter 10% desse que é o mais antigo alimento nacional - tanto que entrou na carta de Pero Vaz de Caminha. Modernidade pura: trigo com sabor de mandioca.

O projeto diz ainda que o consumo da farinha pura não pode passar de 10% do total consumido em cada empresa; e quem desobedecer sofrerá duras punições. Nos considerandos, seu autor, deputado Aldo Rebelo (PC do B-SP), garante que a lei "trará novo alento à triticultura nacional e, especialmente, para os produtores de mandioca" e permitirá "uma economia imediata de US$ 85 milhões" à agricultura do País.

Quando o texto foi apresentado, em 2001, ninguém ligou. "Não vai passar mesmo", calcularam os raros políticos, produtores, padeiros e comilões que dele ficaram sabendo. Mas ultimamente o descaso virou preocupação, pois formou-se uma comissão especial para levar o assunto adiante. E o deputado dispõe de precedentes significativos. No passado colonial, diz ele, os padres tiveram êxito em trocar o trigo e o vinho europeus por mandioca e cachaça, pelo Brasil afora. Criava-se ali um País de pirões, beijus, mingaus, tortas, bolos, pudins e tapioca, tudo de mandioca, que hoje está até no sorvete.

Nem bem tomou corpo, porém, a revolução da mandioca já desencadeou uma contra-revolução. "Como vou fazer um pão maravilhoso, um ravióli de finos temperos, com sabor de mandioca? Não dá!", irrita-se o restaurateur Fabrício Fasano, dono de um dos mais requintados restaurantes de São Paulo - o Fasano, no bairro dos Jardins. "Se essa lei pegar, São Paulo vai perder o título de melhor gastronomia do continente, pois vai ficar tudo igual", lastima-se. "Isso me soa estranho", reforça outro papa do assunto em São Paulo, Massimo Ferrari, dono do Massimo, o restaurante predileto de quatro em cada três tucanos. Ele lembra que "do ponto de vista do gourmet", a boa massa tem de ser 100% do tipo grano duro, para manter um spaghetti al dente, por exemplo. "Há um certo grau de umidade na massa, a capacidade de absorção de água durante o cozimento. Teríamos de fazer um teste técnico, para saber o impacto de tudo isso", prossegue Massimo. Mas a mandioca vai alterar, e muito, o sabor e a consistência de um doce delicado, avisa ele.

Fasano adverte que, se a lei passar, o brasileiro nunca mais vai comer um bom talharim, lasanha ou quindim do mesmo jeito. E como fica o macarrão importado? Será proibido ou vai triplicar de preço? E os panetones? "Mandioca no panetone de Natal? Ora!"

O coro é ampliado por Vittorio de San Marzano, dono do moinho Ocrin, um dos maiores do País. "Ouço falar disso há uns 25 anos, nunca deu em nada." Ele confia na força do hábito: "O brasileiro tem preferências de consumo arraigadas e não abre mão delas."

No front político da batalha, a Associação Brasileira da Indústria de Trigo (Abitrigo) cita estudos técnicos segundo os quais o pãozinho terá muito menos proteína (o teor cai de uns 10% para 2%) e o preço vai subir, e não baixar. Pergunta quem vai controlar esses 10% no moinho, na padaria e no governo - para punir. Lembra que a mandioca já é bastante consumida nas 53 mil padarias do Brasil - a começar pelo pão de queijo, que leva polvilho de mandioca - e que a cadeia do trigo ocupa, hoje, 2,15 milhões de pessoas.

"Além disso vão atrapalhar as exportações", adverte o presidente da Abitrigo, Francisco Samuel Hosken. "O Brasil tem um grande potencial para exportar biscoitos e macarrão, porque nosso açúcar é barato. Você põe 10% de mandioca e perde competitividade", diz ele. E os pequenos produtores de mandioca "podem ser ajudados com subsídios e isenções, ou crédito barato".

Avisado de tais resistências, Aldo tranqüilizou os descontentes com duas notícias. A primeira: na condição de presidente da Câmara, jamais levará a plenário um projeto de sua autoria. Segundo, que o tom impositivo do projeto pode ser negociado. "Essa obrigatoriedade se pode conversar, definir de modo mais flexível", garante. No fim de tudo, quem sabe, plantadores, padeiros, chefs e deputados terminarão tudo numa boa pizza, sem mandioca. Enquanto isso for possível.