Título: À sombra das armações Na falta de argumentos para negar os fatos, governo tenta desmoralizar a testemunha
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/03/2006, Dora Kramer, p. A6

O governo tantas fez na tentativa desesperada de salvar a reputação do ministro da Fazenda, Antonio Palocci, que acabou complicando a situação de vez.

Comprou uma briga inglória, por inútil, com o Congresso ao interromper judicialmente uma sessão de comissão parlamentar de inquérito, ensaiou uma ofensiva para desmoralizar a principal testemunha de acusação contra o ministro e terminou enredado numa nebulosa história de quebra ilegal de sigilo bancário a partir de dados fornecidos por ele à Polícia Federal e também em poder do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) do Ministério da Fazenda.

O governo fez tudo isso e não conseguiu o essencial: defender Antonio Palocci e convencer o País de que o ministro é digno de confiança. Ao invés disso, atraiu sobre o governo a suspeita do uso dos instrumentos de Estado contra o cidadão Francenildo Santos Costa.

É evidente que o Ministério da Justiça negará qualquer participação na divulgação dos dados sobre a conta-poupança do caseiro na Caixa Econômica Federal. Dirá que nunca pensou em dar publicidade às informações dadas pelo caseiro à PF nem jamais teve a intenção de insinuar que ele recebera o dinheiro - R$ 38 mil - nela depositado em troca da declaração de que vira Palocci diversas vezes na casa de lobby de seus amigos e antigos assessores na prefeitura de Ribeirão Preto.

É possível até que consiga emplacar a versão em uma ou outra mente mais desavisada. Mas não poderá apagar da memória de ninguém as evidências.

E estas remetem à comemoração governista quando saíram as primeiras e ainda truncadas notícias a respeito da conta bancária do caseiro, e ao dia todo de aparente tranqüilidade e soberba com que as autoridades - do presidente da República ao ministro da Justiça, passando pelo presidente do Banco Central - reafirmaram confiança em Palocci, deixando de lado o principal: o depoimento dado no dia anterior por Francenildo à CPI dos Bingos.

Eloqüente também foi o silêncio do ministro Palocci durante o dia seguinte à confirmação "até morrer" do caseiro de que ele mentira. Estranha conduta esta de quem acaba de ser gravemente atingido na honorabilidade de sua palavra. O natural seria alguma reação, de preferência indignada. Uma providência judicial contra o caseiro, talvez.

Mas nada se ouviu de objetivo a esse respeito. Durante todo o dia ministros, e até empresários, produziram um entra-e-sai de frases plenas de adjetivos enaltecedores ao ministro, mas vazias de conteúdo sobre a questão em pauta. Ao presidente da República coube o papel de sempre: bravatear, tentar, com ênfase e veemência, negar a realidade e confundir a opinião pública atribuindo tudo à movimentação eleitoral da oposição.

A sexta-feira estava mesmo esquisita, pois soava inverossímil a possibilidade de o governo acreditar que pudesse enfrentar uma história daquela envergadura só na base do discurso.

No início da noite, entretanto, surgiu a explicação para tanta segurança e serenidade: estavam todos no aguardo da divulgação da conta e, com ela, esperavam desmontar o testemunho do caseiro sem a necessidade de explicar qual a relação direta entre o depoimento e a conta bancária de Francenildo Costa. Combateriam à sombra das ilações.

Não seria a primeira vez.

Esse tipo de armadilha foi montado com sucesso para esvaziar o escândalo Waldomiro Diniz. Depois de meses na berlinda, o então ministro José Dirceu conseguiu "vender" a versão de que tudo não passara de uma conspiração engendrada pela oposição e executada pelo então procurador José Roberto Santoro.

Por intermédio de meios e modos tão obscuros quanto os agora empregados para dar publicidade às contas de Francenildo, Dirceu deu divulgação ao trecho de uma fita em que o procurador, interrogando o empresário de jogos Carlos Cachoeira, dizia que corriam ambos o risco de serem acusados de tentar "derrubar" o governo Lula caso ele não entregasse a gravação inteira da conversa em que Waldomiro Diniz pedia propina.

Ato contínuo à exibição da fita no Jornal Nacional, o governo se mobilizou para reforçar junto a jornalistas a versão da conspiração e, apesar das evidências em contrário, prevaleceu a ilação que interessava a José Dirceu: fazer do procurador o grande culpado da história.

O padrão de atuação agora nesse episódio de Francenildo Santos Costa foi o mesmo. A diferença é que o governo não está mais tão poderoso como estava na época, já não conta com tantos olhos e ouvidos benevolentes na imprensa e não dispõe mais da mesma quantidade de gente disposta a acreditar em qualquer história criada pelas artimanhas do poder.

José Roberto Santoro achou melhor se afastar da Procuradoria-Geral da República e voltou a advogar. Como os tempos são outros, o caseiro Francenildo deve permanecer onde está. Tudo indica, escapou de uma cilada onde por enquanto se quedam prisioneiros apenas seus confiantes e desajeitados artífices.