Título: Por trás da revolta dos militares
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Fonte: O Estado de São Paulo, 18/04/2006, Internacional, p. A1

Os apelos de um crescente número de generais recém-reformados pela renúncia do secretário da Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, criaram o mais sério confronto público entre um governo americano e os militares desde 1951, quando o presidente Harry S. Truman demitiu o general Douglas MacArthur. Naquele drama épico, Truman estava absolutamente certo - MacArthur, comandante na Coréia e grande herói da 2ª Guerra, desafiara publicamente a autoridade do presidente e tinha de ser afastado. A maioria dos americanos reverencia com razão o princípio que estava em jogo: o controle civil dos militares. Mas a situação atual é bem diferente.

Em primeiro lugar, está claro que os generais da reserva - seis, por enquanto - falam por muitos de seus antigos colegas, amigos e subordinados ainda da ativa. No fechado mundo dos generais da alta hierarquia na ativa e na reserva, existe diálogo privado constante.

Quem acaba de se reformar mantém contato íntimo com os velhos amigos, muitas vezes antigos subordinados; eles ajudam uns aos outros, sabem o que está acontecendo e mantêm um senso comum.

O general da reserva dos fuzileiros navais Greg Newbold, diretor de operações do Estado-Maior Conjunto durante o período de planejamento da guerra no Iraque, deixou isso claro num artigo extraordinário, por vezes emotivo, publicado na semana passada na revista Time, ao afirmar que escrevia "estimulado por alguns que ainda ocupam posições de liderança militar".

Ele tratou de "desafiar os que ainda vestem a farda ... a dar voz aos que não podem ou não têm chance de falar". Estes generais não são moderados recém-nascidos nem democratas disfarçados (na verdade, esta explosão pública não aconteceu antes porque, entre outras coisas, os generais provavelmente temiam dar a impressão de tomar partido na política doméstica).

São militares de carreira, com mais de 30 anos de serviço, que depois do Vietnã juraram, como Colin Powell escreveu em suas memórias, "que, quando chegasse nossa vez de dar as cartas, não aceitaríamos em silêncio a guerra indolente com razões inconsistentes". No entanto, como Newbold admite, isso aconteceu de novo. Nos comentários públicos dos generais da reserva, pode-se perceber um leve sentimento de culpa: quando eram jovens oficiais, eles aprenderam que os generais da era do Vietnã não foram capazes de enfrentar o então secretário da Defesa, Robert McNamara, e o presidente Lyndon Johnson, mas acabaram fazendo a mesma coisa.

Em segundo lugar, também está claro que o alvo não é apenas Rumsfeld.

Newbold insinua isso; outros são mais explícitos em conversas particulares. Mas as únicas duas pessoas do governo acima do secretário da Defesa são o presidente e o vice. Eles não podem ser demitidos, obviamente, e o código militar implícito normalmente impede ataques públicos diretos ao comandante-chefe quando as tropas estão sob fogo (existem exceções a esta regra, é claro: além de MacArthur, o general George McClellan desafiou Lincoln. E, num incidente menos notório, o general John Singlaub foi demitido por criticar a política do presidente Jimmy Carter para a Coréia. Mas esses confrontos são raros o bastante para serem memoráveis, e nenhuma dessas rebeliões solitárias deu origem a um grupo, um movimento que possa ser descrito satisfatoriamente como uma revolta).

Isto deixa o presidente Bush e seu governo em posição extremamente incômoda, num momento em que a segurança no Iraque e no Afeganistão parece se deteriorar. Se Bush der ouvidos à revolta dos generais, parecerá ter cedido às pressões daquilo que Rumsfeld descreve falsamente como "dois ou três generais da reserva no meio de milhares".

No entanto, se mantiver Rumsfeld, ele correrá o risco de ver mais renúncias de generais - talvez em breve - atendendo ao forte apelo de Newbold segundo o qual, como militares, eles juraram defender a Constituição e agora devem falar em nome dos soldados na linha de fogo e evitar que sua instituição volte a cair na desordem da era pós-Vietnã.

Diante do dilema, a primeira reação de Bush foi exatamente a esperada: ele emitiu firmes manifestações de "apoio total" a Rumsfeld. Chegou a se esforçar para citar o secretário da Defesa como "Don" em vários pronunciamentos (em claro contraste com seus comentários mornos sobre o futuro do outro membro do gabinete sob ataque, o secretário do Tesouro, John Snow. Washington entendeu o recado).

No fim das contas, os argumentos em favor da troca do secretário da Defesa me parecem irresistíveis. Não chego a esta conclusão apenas por causa de erros passados ou porque "alguém precisa ser responsabilizado".

Muitos além de Rumsfeld estiveram profundamente envolvidos nos erros no Iraque e no Afeganistão. Muitos deles continuam no poder e alguns vestem farda.

A principal razão da necessidade de um novo secretário da Defesa é bem mais urgente.

Em termos simples, as estratégias fracassadas no Iraque e no Afeganistão não poderão ser reparadas enquanto Rumsfeld permanecer no epicentro da cadeia de comando.

Os métodos de Rumsfeld, com os quais ele controla a política em detalhes, agora impedem a reavaliação estratégica absolutamente essencial em ambas as zonas de guerra.

Lyndon Johnson entendeu isso em 1968, quando livrou o Pentágono de outro secretário da Defesa controlador, McNamara, substituindo-o por Clark M. Clifford.

Semanas depois, Clifford já reavaliara cada aspecto das políticas e iniciara o longo e doloroso processo de desfazer os compromissos estabelecidos. Hoje, essas decisões ainda são objeto de intensa disputa, e existem muitas diferenças entre as duas situações.

Mas uma coisa era clara naquela época e é clara hoje: se o secretário da Defesa não for substituído, a política não vai mudar. Aquela primeira reação da Casa Branca não será o fim da história.

Se outros generais revoltados aparecerem - e eles aparecerão; se alguns deles estiverem na ativa, como parece provável; e se a situação no Iraque e no Afeganistão não se reverter, o que também parece provável, a tempestade vai continuar e consumir não só Donald Rumsfeld.

A única pergunta é: ela chegará tarde demais, a ponto de não restar esperança de salvar alguma coisa no Iraque e no Afeganistão?

* Richard Holbrook , ex-embaixador dos EUA nas Nações Unidas, escreveu este artigo para 'The Washington Post'