Título: Quando o rei do discurso encontra o homem do caderno
Autor: Vera Rosa
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/03/2006, Nacional, p. A8

Lula e Alckmin se conhecem desde os anos 80, mas só nesta eleição vão se confrontar na vitrine da campanha

Eles são obstinados, contadores de "causos" e donos dos mais curiosos apelidos da política tupiniquim. Mas as semelhanças não vão muito além disso. Com estilos totalmente opostos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, prometem civilidade na campanha que, pela primeira vez, vai pôr em xeque o modo petista e o jeito tucano de administrar o Brasil. Pura retórica: na prática, a disputa entre o sapo barbudo do PT e o picolé de chuchu do PSDB tem tudo para agitar a temporada de pepinos que se anuncia.

Alckmin será o Lula da campanha de 2002, pregando a mudança com respeito aos contratos, o crescimento com inclusão social. Longe dos tempos em que era o "Lulinha paz e amor" para agradar ao mercado, o presidente que hoje vive às voltas com a crise política fará de tudo para arquivar os problemas e falar somente do que lhe interessa: as "obras" de seu governo. Incorporando o figurino de pai dos pobres, Lula usará como trunfo o Bolsa Família, vendido pelo Planalto como "o maior programa social do mundo".

"Vai ser uma briga de frasqueiras: Louis Vuitton contra Bolsa Família", ironiza o deputado Paulo Delgado (PT-MG), numa referência à grife preferida por nove entre dez tucanos que compram na Daslu. "O Alckmin não é de luxo, não: ele gosta mesmo é de um bom PF, um prato feito com arroz, feijão e bife com ovo", retruca Walter Feldman, secretário municipal das Subprefeituras.

O governador e o presidente se conhecem desde os anos 80, quando ainda eram apenas Geraldo e Lula. Na época, Alckmin era um apagado deputado estadual do PMDB e Lula, incendiário candidato do recém-criado PT ao governo de São Paulo. Os dois nunca tiveram uma relação próxima, mas viviam cercados por amigos em comum. Lula era unha e carne com Mário Covas, o padrinho político de Alckmin. Covas falava de "Geraldinho" com admiração e o petista aprendeu a respeitá-lo.

Será apenas nesta eleição, porém, que os estilos e temperamentos de cada um vão se confrontar na vitrine da campanha. O presidente deverá se acostumar a ver o adversário carregando um cadernão universitário de 200 folhas, a postos para anotar reivindicações de eleitores. No Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista, ninguém mais liga para o estranho hábito do governador.

DISCIPLINA

"Em toda audiência, ele anota os principais pontos. Às vezes, um secretário promete uma coisa para o dia tal. Não tem escapatória: chega a data e ele cobra", conta Luiz Salgado, assessor especial de Alckmin. "É implacável na disciplina", emenda o deputado estadual Édson Aparecido, que coordenou a maratona alckmista pelo apoio dentro do PSDB.

A finalidade principal do caderno, no entanto, é mesmo exercitar a memória. Uma técnica antiga, passada de pai para filho. "Tudo o que ele escreve guarda. É como se estivesse escrevendo nos neurônios. Por isso tem facilidade de citar tantos números", entrega Salgado.

Lula não tem paciência para esses detalhes. Delega a tarefa de registrar as audiências à petista Clara Ant, que prepara fichas por assunto das conversas mantidas por ele no gabinete.

"Ele é exigente, mas tem um coração enorme. Por isso sofre tanto quando precisa demitir", descreve o deputado Devanir Ribeiro (PT-SP), amigo de Lula desde os tempos em que ambos integravam a diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, no ABC paulista.

Bem antes da reforma ministerial que se transformou numa agonia de meses, no ano passado, Lula já planejava algumas trocas na equipe. Um dia, disse a um auxiliar direto que dispensaria um ministro do PT, seu amigo, por estar descontente com o trabalho do companheiro. Pediu que o chamassem ao Planalto. "Assim não dá!", esbravejou. Depois de conversarem a portas fechadas, saiu de lá abraçado a ele. Resultado: nada aconteceu.

Médico com especialidade em anestesia, Alckmin é o oposto, sangue-frio e pragmático. Seu lema não deixa dúvida: "Pão-pão, queijo-queijo." De tão detalhista, o governador de São Paulo já chegou a assustar funcionários com suas manias.

Quando percorre os jardins do Palácio dos Bandeirantes, por exemplo, todos já sabem: se constata uma bituca de cigarro ou um papelzinho no chão, não se contém. Agacha-se para pegar tudo e jogar no lixo. "É educativo", atesta, em tom didático, o ex-professor de Química Orgânica.

No duelo que se aproxima, porém, até mesmo os tucanos admitem que o candidato do PSDB precisa treinar o gogó. Motivo: Lula tem um discurso feito sob medida para cada público e, apesar de cometer gafes por falar demais, empolga multidões com suas histórias de vida. É como se estivesse conversando com os ouvintes. Corintiano roxo, vira-e-mexe cita o time do coração nos improvisos. Tímido e discreto, o santista Alckmin prefere não exibir sua preferência. E também não é chegado a repentes. Até os "causos" que ele conta são calculados.

Para o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, o gesto de Lula - que na quinta-feira cumprimentou Alckmin pela vitória no PSDB depois de um périplo contra o prefeito José Serra - mostra a disposição do governo para empunhar a bandeira da paz. "Se depender do Lula, a campanha será levada numa boa, sem baixarias. Ele odeia agressões e não aceita a política do tudo ou nada", garante Bernardo.

No outro front, o deputado Alberto Goldman (PSDB-SP) afirma que o "tudo ou nada" é especialidade do PT. "O Lula passou por despenhadeiros com picadas, jacarés, florestas com índio. Adquiriu uma couraça. Assumiu sempre com guerras e continua guerreando. O resto é discurso", alega. O desafio do PSDB, para Goldman, é construir um programa de governo. "E o do Geraldo é mostrar que não é refém do mercado."

Católico fervoroso, Alckmin terá alguns meses para pedir proteção divina nessa empreitada. Lula já escancarou sua fé, numa praia distante, no interior do Piauí. Até nisso eles são diferentes: enquanto o governador reza sozinho e abaixa a cabeça para fazer o sinal da cruz quando entra no avião, Lula ergue os braços e agradece em público a boa maré que mantém sua popularidade alta, apesar da ruidosa crise. Coisas de campanha.