Título: Discussão arrevesada
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/03/2006, Nacional, p. A3

S e o governo estiver mesmo estudando medidas concretas para acabar com o overbooking - fato que ocorre quando passageiros com lugar reservado em determinado vôo não conseguem embarcar porque a aeronave já está lotada -, terá tido um efeito prático importante para os usuários dos serviços das companhias aéreas o episódio que envolveu o comandante do Exército, general Francisco Roberto de Albuquerque. Caberá à Infraero, como afirmou ao Estado o presidente da empresa, Carlos Wilson, a tarefa de combater essa prática.

Os passageiros Francisco Roberto de Albuquerque e sua esposa tinham reservado lugares no vôo da companhia aérea TAM de Campinas a Brasília, na Quarta-feira de Cinzas. Mas, quando se apresentaram no balcão da companhia, foram informados de que eles, como outros 14 passageiros, não poderiam embarcar porque todos os assentos da aeronave já estavam ocupados.

Legitimamente, o passageiro pediu explicações e exigiu seu direito de embarcar no vôo para o qual tinha feito reserva. Teve o tratamento normal que as companhias aéreas dispensam às vítimas de overbooking: disseram-lhe que aguardasse vaga em algum dos próximos vôos para seu destino. Não fosse ele o comandante do Exército, não embarcaria.

Discute-se se o general Francisco de Albuquerque exorbitou de suas funções ao invocar sua condição de comandante do Exército para exigir do Departamento de Aviação Civil (DAC) que retivesse o vôo no qual tinha reserva, para que ele e a mulher pudessem embarcar. Cabe à Comissão de Ética Pública da Presidência da República, para onde o caso foi remetido, decidir a questão.

Mas essa discussão está sendo conduzida de maneira arrevesada. O problema não é o fato de o comandante do Exército ter embarcado, passando aos olhos da opinião pública como usurpador de direitos de outros. O problema é ele e outros 14 passageiros terem sofrido o que está se tornando uma rotina nos aeroportos: o desrespeito a seus direitos.

Quem já foi vítima do overbooking, e teve de enfrentar os dissabores dele decorrentes, que não são poucos, saberá avaliar a importância de se recolocar a discussão nos termos devidos. O problema, insistimos, não é um passageiro conseguir embarcar, quando tem todos os direitos para isso, apenas porque se valeu de sua condição de comandante do Exército. O problema é a prática comum das companhias aéreas de não embarcar passageiros com esse direito.

A explicação das empresas para essa prática é o fato de que, dos passageiros que fazem reserva, uma parcela - que elas estimam entre 10% e 20% do total - não comparece para o embarque. Dão a esse fato o nome de no show, ou não apresentação do passageiro para o embarque. Como contrapartida ao no show, as empresas adotaram a prática do overbooking, que, na sua opinião, raramente prejudica os usuários.

Mas os passageiros que viajam com freqüência sabem que a ocorrência não é tão rara. E não é um problema novo. Companhias aéreas têm sido condenadas pela Justiça em primeira instância por prática de overbooking. Há alguns anos vigora um acordo entre empresas aéreas, governo e entidades de defesa do consumidor, cujo objetivo, afirmou-se, era desestimular essa prática. Para isso, foi instituído um sistema de compensação para o passageiro que aceitasse embarcar em outro vôo. Esse sistema prevê indenização em dinheiro, de valor fixado por meio de leilão entre os passageiros prejudicados, pagamento de despesas com alimentação e hospedagem, entre outras sanções para a empresa.

Mas, em lugar de desestimular, esse acordo tem servido para justificar o overbooking, que desrespeita o Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor. Não é um acordo de preço ou de quantidade entre companhias interessadas em dominar o mercado, que caracteriza a formação de cartel. Mas ele permite a padronização de procedimentos, em favor das empresas e em detrimento dos passageiros, com resultados iguais aos de um cartel.

Além de todos esses problemas, o caso mostra uma faceta intrigante. Este deve ser o único país do mundo em que um funcionário subalterno de uma empresa tem poder para deixar uma autoridade do nível do comandante do Exército na lista do overbooking e muita gente achar isso normal.