Título: Ação, experiência e narração em FHC
Autor: Celso Lafer
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/03/2006, Espaço Aberto, p. A2

Hannah Arendt atribuía grande importância à narrativa e à experiência como meio de alcançar a compreensão das coisas. Todo evento, afirmava, ao ser lembrado é pensado, e é inerente à articulação de uma narrativa a busca de um significado a ser compartilhado na intersubjetividade da condição humana. Para Hannah Arendt, as teorias políticas, por mais abstratas que pareçam, usualmente têm subjacentes a instigação de situações e incidentes que, devidamente captados, contêm no seu núcleo o que se tem a dizer.

É visível o alcance explicativo da experiência narrada na exposição do visconde de Mauá aos seus credores, reveladora do desafio do empreendedorismo no Brasil do século 19; de Minha Vida, de Trotski, para o entendimento da formação de um revolucionário; das Memórias, de De Gaulle, na compreensão do que forja um estadista; ou da Autobiografia, de Bobbio, na percepção de como os eventos do século 20 marcaram a trajetória de um intelectual militante.

Estas considerações me ocorrem ao tratar de The Accidental President of Brazil - a memoir, de Fernando Henrique Cardoso, que acaba de ser publicado nos Estados Unidos. O livro é o relato de sua vida na perspectiva organizadora das experiências que levaram um grande intelectual a uma bem-sucedida carreira política, que culminou com dois densos mandatos presidenciais.

O livro de FHC flui naturalmente, avivado com muitos "causos" - de Sartre em Araraquara a Albert Hirschman incursionando pelo interior de Goiás; do chá com a rainha-mãe da Inglaterra ao impacto do encontro com Nelson Mandela. Possui a sedutora boa prosa de quem sabe e gosta de contar uma "estória", intercalando-a com as reflexões do scholar e instigando-a com a sagacidade do político, como se pode ler nos relatos de seu relacionamento com Lula ou de suas conversas com Kohl, Jiang e Clinton.

A narrativa de FHC tem como entorno definidor o Brasil. O enredo é tecido, como ocorre na memorialística, pela estabilidade do eu que conta e retrospectivamente pondera o que foram as experiências de suas passagens.

O relato parte do menino que recupera a experiência política da sua família: o bisavô governador da Província de Goiás, no Império; o avô militar positivista e republicano; o pai, militar nacionalista que viveu a Era Vargas e foi deputado federal pelo PTB. Ao menino inserido na sua família se sucede o jovem de muitos interesses e logo o intelectual crítico, professor de sucesso na USP, voltado como sociólogo para a investigação de campo do nosso país. Segue-se, em 1964, em função da "caça às bruxas" do regime militar, o exílio do homem de pensamento de esquerda. O exílio trouxe agruras, mas também oportunidades intelectuais e institucionais no trato e na lida com o mundo. O retorno, a aposentadoria compulsória da universidade, o peso da vida na vigência do autoritarismo impulsionam o intelectual militante a criar, com engenho, um espaço de pensamento crítico, o Cebrap, que foi levando FHC a uma relevante atuação oposicionista no debate das idéias.

O desdobramento destas etapas é a travessia. Esta é dada pela gradual, mas efetiva transformação do intelectual - que nunca deixou de ser um intelectual - num ator político de crescente competência e importância (prócer partidário, senador, ministro) que enfrentou derrotas (por exemplo, a da eleição da Prefeitura de São Paulo) e com elas aprendeu e que se tornou presidente da República pela força do voto popular. No percurso se mesclam e convergem o talento e os acasos. A isto alude o título do livro, que dá o devido destaque às circunstâncias que levaram FHC ao Ministério da Fazenda e ao Plano Real.

Quais as experiências decisivas deste relato, reveladoras do núcleo daquilo que FHC deseja transmitir e compartilhar? Na esteira da sugestão arendtiana, diria que são quatro. A primeira é fruto da análise de dom Pedro II e de sua queda, com a proclamação da República, da qual seu avô participou. Daí extrai a lição de que nem o preparo e a seriedade, ao modo de dom Pedro II, nem o voluntarismo do inconformismo jacobino da geração do seu avô são suficientes para lidar com os problemas do Brasil. A segunda provém da experiência do acadêmico que estudou em profundidade a escravidão e sua pesada herança na vida do País em termos de raça, desigualdade e pobreza. Daí a consciência das mudanças necessárias para desatar os nós que impedem o efetivo desenvolvimento do Brasil e do seu povo. A terceira experiência é a do exílio. Este ensejou a reflexão sobre a inserção do Brasil na América Latina e no mundo, com seus riscos e oportunidades para os caminhos do futuro. A quarta resulta dos anos de chumbo do autoritarismo. O arbítrio aprofundou as convicções democráticas de FHC e consolidou sua postura em prol dos direitos humanos.

Este é o substrato explicativo da atuação do presidente que na condução dos assuntos foi muito bem servido pela sua personalidade e pelo domínio das artes da política. O que singulariza, no entanto, a gestão de FHC é a sua substantiva condição de intelectual. Foi o que o habilitou a entender a complexidade das questões da agenda brasileira, a perceber tendências e a definir rumos. Do sociólogo, como ele explica, reteve o método: buscar a informação relevante e compreender, sem dogmatismos ideológicos, todos os pontos de vista. Daí, em conexão com as experiências decisivas acima mencionadas, a sua democrática postura como chefe de Estado, procurando entender e discutir antes de decidir.

Governar, dizia Mendès-France, é escolher. Para o homem público FHC, a escolha não é a opção entre o bem ou o mal, mas entre o preferível e o detestável. O detestável, para FHC, é manter o Brasil com suas injustiças como o eterno país do futuro. Por isso, com convicção e competência na sua trajetória promoveu mudanças que estão levando o nosso país a se tornar um país para o hoje, e não para o amanhã. O relato de FHC, com suas experiências e ideais, é um livro de amor ao Brasil.