Título: Um aniversário sem nada a celebrar
Autor: Ariel Palacios
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/03/2006, Internacional, p. A14

Golpe militar que matou 30 mil na Argentina faz 30 anos e marca a decadência material das Forças Armadas

Três décadas depois do golpe na Argentina, nada restou do poder militar. Desmoralizadas, desestimuladas, sobrevivendo espartanamente, com salários encolhidos, orçamentos reduzidos e equipamento sucateado, as Forças Armadas são um pálido reflexo do brilho que ostentaram durante a ditadura. Elas não possuem influência política nem respaldo popular. Há 30 anos, um general ganhava o mesmo que um juiz federal. Agora, recebe um terço. A participação no Orçamento Nacional, era de 17% em média. Atualmente é de 7%. Hoje, existem 1,8 militar para cada grupo de 1.000 habitantes. Durante a ditadura, o número era 5,5. Atualmente, seria materialmente impossível a implementação de um golpe.

Na noite do dia 19 de dezembro de 2001, véspera da queda do governo de Fernando De la Rúa, quando uma onda de saques ao comércio se espalhava perigosamente pelo país e o toque de recolher não era respeitado, um diplomata brasileiro perguntou a um colega argentino se era possível um golpe militar. O argentino respondeu com ironia: "Desta vez, os militares não vão aparecer. Não têm diesel para os tanques. E mesmo que chegassem à Praça de Maio empurrando os velhos blindados, não teriam balas".

Há exatos 30 anos, os militares argentinos derrubavam a presidente civil María Estela Martínez de Perón, conhecida como Isabelita, que um ano e meio antes, na categoria de vice-presidente, havia tomado posse após a morte de seu marido, Juan Domingo Perón. Na ocasião, o novo desembarque dos militares no poder foi apoiado por vários setores da sociedade, enquanto que outros foram indiferentes e poucos resistiram imediatamente. A maioria estava cansada do caos político do governo da inexperiente Isabelita - em cujo currículo, antes de ser esposa do fundador do peronismo, só constava seu passado como bailarina de cabaré no Panamá.

Os militares implantaram uma ditadura férrea nunca antes vista no país. Para impor o domínio, não hesitaram em assassinar 30 mil civis, a maioria sem militância política alguma. Para impedir que um dia os filhos dos desaparecidos vingassem os pais, seqüestraram 500 bebês, que foram criados por famílias de militares estéreis ou civis cúmplices. Em sete anos de regime, a dívida externa saltou de US$ 8 bilhões para US$ 45 bilhões. A inflação passou de 182% para 343%. O número de argentinos vivendo abaixo da linha a pobreza cresceu de 5% da população para 28%. A política econômica, aos tropeços, abriu o país às importações para depois, subitamente fechá-las novamente, e mais tarde, mais uma vez, abri-las. Os investimentos estrangeiros preferiram países mais previsíveis como o Chile e o Brasil.

Como guerreiros, os militares foram um desastre. Quase entraram em guerra com o Chile em 1978, conflito que os generais de hoje consideram que teriam perdido. E, em 1982, sofreram a fragorosa derrota nas ilhas Malvinas perante os britânicos. O sociólogo Torcuato Di Tella, irmão do ex-chanceler Guido Di Tella e descendente de uma família de poderosos industriais, afirma que "dentro de seus objetivos", as ditaduras do Chile e do Brasil tiveram êxito. "A argentina foi um fracasso total".

Ser militar hoje em dia não entusiasma. Nos quartéis, a moral é baixa. Embora 95% dos atuais militares não estivessem nas Forças Armadas na época da ditadura, eles também sofrem com o estigma de assassinos. Além disso, eles se frustam ao ver que pilotos uruguaios possuem mais horas de treinamento, os chilenos adquirem modernos tanques e os brasileiros desenvolvem submarinos próprios. Os salários de metade dos militares não chegam a 860 pesos (US$ 286), valor que divide a linha da pobreza na Argentina.

Uma investigação realizada pela consultora de opinião Graciela Rõmer entre 5 mil integrantes do Exército e 330 cadetes da Escola Militar indicou que a "ponte" com os civis não está ainda totalmente reconstruída. "Existe uma má imagem pela derrota nas Malvinas, mas, o pior é a herança da guerra suja", diz Graciela. Apesar do desgaste, os militares são mais respeitados do que os políticos. Eles possuem de 28% a 30% de imagem positiva, muito superior à média de 5% e 8% da Justiça, sindicatos, partidos políticos e o Congresso. Os crimes da ditadura ainda dividem. A investigação de Rõmer - a primeira vez que o Exército abriu as portas para um civil - indicou que 58% dos militares acreditam que ocorreram violações. No entanto, 26% negam. Diante da mesma pergunta, 80% dos civis concordaram.

Tal como na Europa, onde historiadores revisionistas sustentam que não existiram campos de concentração nem a "solução final" nazista, na Argentina oficiais da reserva e ativa, além de políticos da direita, afirmam que os assassinatos de civis e seqüestros de bebês são "mentiras" de "comunistas".

A digestão dos acontecimentos da ditadura ainda está sendo realizada. É considerável a proporção de militares que justifica o modus operandi de violência da ditadura. Para 68% dos militares, aquele período "foi uma guerra, e na guerra comente-se excessos". Somente 21% discordam. Entre a população, o percentual é de 52%.

Os militares que desejam melhorar a relação com a sociedade afirmam que é preciso deixar essa questão para trás. Eles dizem que "todos" (os militares e a guerrilha) cometeram violações. "Começar de novo, de zero, e olhar para a frente", é a proposta de 57% dos integrantes do Exército. Mas, somente 33% dos civis concordam com esta proposta.