Título: Cheia cria nômades no Pará
Autor: Roldão Arruda
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/04/2006, Metrópole, p. C8

As cheias já deixaram 17 municípios em estado de alerta no Pará, afetando cerca de 119 mil pessoas. O total de famílias desabrigadas chega a 1.054, segundo a Defesa Civil. Uma das cidades mais afetadas é Marabá, às margens do Tocantins. O último levantamento, concluído ontem, aponta 451 famílias desabrigadas. Entre pessoas que ficaram sem ter onde morar, sendo recolhidas em abrigos públicos, e as que tiveram de se mudar por causa da enchente, o total de atingidos chega a quase 12.500.

Num cenário como esse, o que chama a atenção em Marabá é o fato de as enchentes estarem tão incorporadas à rotina das famílias mais pobres. Não é difícil entender isso: as casas onde vivem estão nas áreas mais baixas da cidade, quase ao nível do leito do Tocantins - que pode subir até 15 metros na estação das chuvas, que começa religiosamente em dezembro e se estende até o final de abril.

Na parte velha da cidade, há uma área pública onde moradores montaram barracos de lona preta, em meio ao esgoto a céu aberto e a um cheiro insuportável que vem das latrinas abertas pela prefeitura de Marabá. A administração também fornece caminhões-pipa, que abastecem as famílias duas vezes por dia, e recolhe o lixo no local. É lá que a faxineira Doralice Pereira, de 35 anos, descreve a rotina de cada ano, enquanto lava a louça: "Em dezembro, quando começam as chuvas, a gente vem aqui pra cima reservar o lugar para o barraco. Em janeiro, quando a água sobe, a gente muda."

Se sabem que as águas vão cobrir as casas, por que não se mudam? "Fora daqui é tudo muito caro", responde prontamente Doralice, que ganha R$ 30,00 por dia de faxina e paga R$ 50,00 pelo aluguel do barraco que está na área à nossa frente, só com o teto fora da água.

O know-how é tão desenvolvido que até estabelecimentos comerciais se mudam e continuam servindo velhos clientes na área dos abrigos. É o caso da Mercearia Bambu, onde Conceição Néris, de 13 anos, atende no balcão: "É só começar a subir o rio que a gente vem, com freezer, balcão e tudo."

Desde domingo, a lâmina do Tocantins desceu 20 centímetros por dia em média e não há previsão de chuva forte para os próximos dias. A esperança dos moradores é de que as águas baixem em um mês, no máximo. Aí vão começar a limpeza, como explica Maria dos Anjos Pereira, sem parar de esfregar um a lona preta com a vassoura: "A gente encontra tudo coberto de lodo. Tem de lavar com creolina, Q'Boa, desinfetante e depois ainda esperar uns três dias, antes de sair o cheiro, pra poder voltar." Neste ano, segundo o Instituto Nacional de Meteorologia, a elevação do nível do Tocantins e de outros rios do sul do Pará ficou dentro dos padrões históricos, entre 10 e 15 metros acima do nível médio.

Não houve, portanto, catástrofe meteorológica. O que se vê em Marabá e outras cidades da região, como Eldorado dos Carajás, a 97 quilômetros de distância, parece ser mais resultado da situação miserável em que vive parte da população, sem dinheiro para comprar terrenos ou pagar aluguéis nas áreas que o rio não cobre.

Para alguns observadores, a situação das famílias é tão miserável que elas acabam sendo beneficiadas pela estadia nos abrigos públicos, onde recebem cesta básica, roupas e acompanhamento médico. Para o bispo de Marabá, o italiano d. José Folarosso, que também ajuda a organizar a assistência a essas pessoas, muitas delas não querem sair dos baixios.

Na opinião do bispo, algumas estão acomodadas demais e preferem receber assistência todos os anos a mudar; outras não saem porque estão perto dos locais do trabalho ou dependem de bicos ligados à pesca. O marido de Doralice, com quem ela tem dois filhos, é um dos que vivem de trabalhos ocasionais nas águas do Tocantins.