Título: Brasil limpa o nome
Autor: Celso Ming
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/04/2006, Economia & Negócios, p. B2

"Dei pra maldizer o nosso lar, pra sujar teu nome, te humilhar" diz um verso de Chico Buarque musicado por Francis Hime (Atrás da porta).

Na dívida externa brasileira, o nome sujo do Brasil veio com a moratória, estendida depois para os títulos do Plano Brady, emitidos em 1994, que puseram fim à renegociação da dívida.

O Plano Brady foi lançado pelo secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Nicholas Brady, do governo Bush (pai). Esses títulos substituíam a dívida caloteada, com um desconto. Tinham prazo escalonado de resgate até 2024, a juros camaradas, mas exigiam a contrapartida de garantia (parcial) com títulos do Tesouro americano. Não contemplaram apenas o Brasil. Os países emergentes em crise podiam recorrer a ele. Com a emissão dos bradies, o governo americano pretendia normalizar o mercado financeiro internacional convulsionado pelas crises dos anos 80, relacionadas com os dois primeiros choques do petróleo e com a grande recessão comandada pela alta dos juros decidida pelo Federal Reserve (banco central dos Estados Unidos).

Como tiraram o Brasil da moratória, os bradies deveriam ser entendidos como redenção. Mas, para todos os efeitos, ficaram como símbolo de ficha suja porque, enquanto se mantivessem em circulação, lembrariam o megacalote.

A moratória brasileira provocou efeitos devastadores no mercado internacional do crédito. Um desses efeitos foi o afastamento definitivo dos bancos internacionais. Eles deixaram de financiar o déficit público dos países emergentes e se transformaram em meros intermediários entre as emissões de dívidas soberanas e os tomadores desses títulos (pessoas físicas e instituições). Esse movimento mudou drasticamente o modelo de renegociação de uma dívida.

Nos anos 80 (até meados dos anos 90), bastava reunir duas ou três dezenas de representantes dos bancos internacionais num hotel de Nova York e iniciava-se a renegociação. Hoje, há centenas de milhões de tomadores, espalhados pelo mundo inteiro. Por ocasião da renegociação da dívida argentina, só na Itália havia 450 mil. Não é mais possível promover assembléia de credores nem mesmo em estádios de futebol. De um lado, ficou mais fácil para um Estado soberano impor suas condições; de outro, ficou mais difícil controlar as dissidências e as decisões dos tribunais.

Ontem, o Tesouro brasileiro resgatou o estoque remanescente de US$ 6,6 bilhões em bradies, acionando a cláusula de recompra, como previa o contrato de lançamento. Mais do que um lance financeiro que reduz a dívida externa líquida, foi uma operação psicopolítica, aquilo que na praça se chama de "limpeza de nome".

Como esta operação de resgate dos bradies foi anunciada dia 10 de fevereiro, o impacto imediato já aconteceu: o prêmio de risco, que avalia a qualidade da dívida pública brasileira, caiu dos 253 para a altura dos 230 pontos, em que está hoje. Isso significa que o título brasileiro passou a ter maior aceitação. Mas, uma vez completado o movimento, será inevitável que se espraie no mercado internacional a percepção de que a dívida brasileira é cada vez mais confiável. Agora virá o impacto silencioso e mais profundo que garantirá novas reduções dos juros pagos ao credor externo.

Está correto afirmar que essa operação apressará a obtenção de grau de investimento para a dívida pública. Quando isso acontecer, os títulos brasileiros poderão ser adquiridos por fundos de pensão, seguradoras e instituições que, por lei ou por contrato, estão obrigados a aplicar suas reservas em ativos de risco zero. Esse aumento de demanda por papéis brasileiros, por sua vez, se encarregará de derrubar ainda mais os juros da dívida externa.

Não é demais insistir em que este será um fator adicional a achatar as cotações do dólar no câmbio interno, como ainda ontem reconhecia o ministro da Fazenda, Guido Mantega: "O dólar, infelizmente, está caindo; não dá para ter tudo."

Esse reconhecimento talvez corrija a bobagem declarada na semana passada pelo próprio Mantega: "Felizmente, o dólar chegou ao fundo do poço." Quando isso foi dito, o dólar estava a R$ 2,1400; ontem, fechou a R$ 2,1170.