Título: Kirchner quer mea-culpa da sociedade
Autor: Ariel Palacios
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/03/2006, Internacional, p. A20

No 30.º aniversário do início da ditadura argentina, presidente diz que militares não foram os únicos responsáveis

O presidente argentino, Néstor Kirchner, pediu ontem um explícito mea-culpa por parte de setores da sociedade que colaboraram com a ditadura (1976-83), responsável pelo assassinato de 30 mil civis. Ele citou a imprensa, a Igreja, setores empresariais e a classe política, que teriam respaldado o golpe de 24 de março de 1976. "O golpe não foi um fenômeno protagonizado só pelos militares, pois teve a participação de grupos que nunca reconheceram sua responsabilidade", declarou.

Ontem, ele presidiu a principal cerimônia em homenagem aos mortos pelo terrorismo de Estado e em repúdio ao golpe, que completou 30 anos. Em todo o país ocorreram centenas de atos públicos. No principal deles, no fim da tarde, 100 mil pessoas marcharam da Praça do Congresso Nacional até a Casa Rosada. Cerca de 370 organizações políticas, sindicais, de direitos humanos e de estudantes ostentaram o lema "Nunca Mais". Mas a manifestação terminou repentinamente quando os organizadores desligaram o microfone do palanque principal, no momento em que as líderes dos grupos Avós e Mães da Praça de Maio explicavam que, ao contrário do anunciado pelos oradores, o documento final das organizações que participaram do protesto não havia sido assinado por elas. Indignadas, as avós e mães deixaram o local. Os movimentos de esquerda incluíram no documento críticas ao governo e à invasão americana do Iraque, algo que as avós e mães consideraram não ter conexão com a manifestação, destinada a recordar as vítimas da ditadura.

Segundo Kirchner, a ditadura foi "a mais sanguinária experiência antidemocrática da história argentina". Ele fez o discurso na Escola Militar de El Palomar, onde, com a primeira-dama, a senadora Cristina Fernández de Kirchner, descerrou uma placa de bronze com os dizeres: "Nunca mais golpes e terrorismo de Estado." Kirchner disse que não será possível a reconciliação nacional enquanto existir impunidade, referindo-se aos militares e policiais que cometeram violações dos direitos humanos. Havia a expectativa de que Kirchner pudesse anunciar a revogação do indulto concedido em 1991 pelo ex-presidente Carlos Menem à cúpula da Junta Militar. Mas ele disse que deixará essa decisão para a Justiça.

Kirchner criticou duramente o então ministro da Economia da ditadura, Alfredo Martínez de Hoz, cuja política econômica aumentou em 454% a dívida externa, triplicou a inflação e causou o encolhimento da indústria. "Esse modelo não acabou com o regime militar, mas continuou até o fim dos anos 90, gerando a pior crise social da Argentina, com conseqüências que ainda enfrentamos." Kirchner lembrou que Martínez nunca foi punido. Horas depois, 400 manifestantes foram até o edifício de Martínez e jogaram sacos com tinta vermelha contra as paredes, simbolizando o sangue dos civis mortos. A polícia reprimiu o protesto com gás lacrimogêneo. Sete policiais foram feridos a pedradas.