Título: Dora Kramer
Autor: O avesso no espelho
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/03/2006, Nacional, p. A6

Governo bate como gigante, mas só admite apanhar se o adversário for pigmeu

O presidente Luiz Inácio da Silva faz um prognóstico realista, mas incompleto, a respeito do clima que se avizinha para a campanha eleitoral. Prevê um "jogo muito baixo" e termina por aí o acerto de sua previsão.

O "jogo" de fato antecipa-se de uma baixeza ímpar, mas, convenhamos, não se trata - ao menos por ora - de uma obra de engenheiros da oposição.

Pautados pela agenda eleitoral, os oposicionistas de fato retomaram a ofensiva de ataques ao presidente e ao seu governo, ávidos para recuperar o terreno perdido no auge da crise quando tiraram por menos a força de Lula e acreditaram-se aptos desde então a fazê-lo sangrar até a eleição.

Mas configura-se uma nova agressão às evidências a ilação presidencial de que as vilanias que tornam a situação, como ele diz, "mal", e a antecipem péssima na campanha, tenham origem em ações de seus adversários.

Não foram eles os artífices de mentiras perante comissões parlamentares de inquérito e em entrevistas oficiais, não foram eles os autores de ações judiciais para cassar a palavra de testemunhas, não foram eles os autores de uma quebra ilegal e comprovada de sigilo bancário, não são eles os manipuladores dos instrumentos de Estado em benefício privado, não pertence a partido de oposição a dançarina da madrugada do achincalhe na Câmara dos Deputados.

Esse conjunto de episódios, para ficar só nos mais recentes, não autoriza ninguém, muito menos o presidente da República, a considerar o cenário um indicativo de que ao PT e ao governo interessa a execução de um jogo eleitoral altaneiro.

Só se for para combinar assim: a oposição submete-se aos preceitos da fidalguia e o governo segue as normas do vale-tudo. Uma espécie de façam o que eu digo, mas não façam o que eu faço às avessas.

Os exemplos à disposição apontam para uma tenebrosa disposição do Palácio do Planalto e adjacências de lançar mão de quaisquer estratagemas para, não apenas evitar a abordagem direta das questões em pauta, mas para jogar a culpa em cima dos que representam ou assim são vistos como ameaça ao projeto de reeleição.

Na sua primeira aparição em público depois do advento Francenildo Costa, o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, igualmente estapeou os fatos. Simulou normalidade no exercício do cargo atribuindo suas agruras ao "recrudescimento do quadro político" resultante de erros do governo e da oposição, amenizou, tergiversou, saiu pela tangente e seguiu a linha "o que vem debaixo não me atinge" adotada pelo presidente para justificar a impossibilidade de dar respostas claras à sociedade.

O ministro da Fazenda adjetivou a crise, falou em desrespeito, perseguição e também previu ambiente de agressividade para a campanha eleitoral. Falou e nada disse, pois continuou - a pretexto de não entrar no debate "baixo" - a não responder ao essencial. Fugiu do assunto, como de resto tem sido o modelo do qual Palocci até agora havia conseguido se diferenciar.

Desde ontem, porém, o ministro da Fazenda já não poderá mais ser avaliado como o porta-voz da ponderação, da transparência e da estatura dentro do governo. Igualou-se ao padrão vigente e, nessa condição, não servirá mais de contraponto às vulgaridades que imprimem ao Brasil desses tempos de tantas mentiras e degradação a face de um país em franco estado de desmoralização.

Auto-engano

No principal discurso de ontem, o presidente Lula assegurou que continuará se comportando como "um pai" para o País, "sem perder de vista a razão pela qual ganhei as eleições".

Uma frase e três equívocos: não foi eleito para ser pai da pátria nem para aprofundar a desesperança, muito menos para consolidar situações passíveis de mudanças.

À moda Médici

Em geral território livre da oposição às sextas-feiras, a tribuna do Senado foi dominada ontem por uma maioria de petistas. Não interessados em defender seus pares em apuros, como Antonio Palocci e Ângela Guadagnin, mas empenhados em mudar de assunto.

Nem um pouco preocupados com as agressões ao capítulo dos direitos e garantias individuais e ao uso privado dos instrumentos de poder do público, um dos pontos cruciais da luta pela redemocratização.

Bastante dedicados a enaltecer números da economia, totalmente indiferentes aos retrocessos na democracia.

Assim agia o regime militar, inoculando à alma do brasileiro o sentimento de prevalência da economia sobre todos os outros valores indispensáveis à democracia - a liberdade, o contraditório inerente ao exercício da política, e a lei.

Maneiras

Diante da grossa pancadaria promovida por dois deputados do PMDB e da leviana alegria demonstrada por uma deputada do PT em plenário, ambos os episódios ocorridos na madrugada da absolvição de mais dois mensaleiros, o presidente da Câmara, Aldo Rebelo, tem duas escolhas.

Ou afirma autoridade chamando aos costumes os três, ou confirma a permissividade como regra geral de sua gestão.