Título: Não basta dar dinheiro
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Fonte: O Estado de São Paulo, 25/03/2006, Notas & Informações, p. A3

Mais de metade dos brasileiros beneficiados por programas oficiais de ajuda - 52% - tinham algum tipo de ocupação em 2004, segundo pesquisa feita pelo IBGE. A proporção chegava a 79%, quando se consideravam os chefes de família dos lares alcançados pelos programas. Estavam empregados e, no entanto, precisavam receber dinheiro do governo para complementar o orçamento. Sem isso, mal conseguiriam sobreviver e, decerto, não poderiam manter seus dependentes. Nesse quadro, que revela uma das mais acabrunhantes mazelas do Brasil, com 79% dos chefes de família trabalhando, o maior problema, obviamente, não era o desemprego.

Era, e continua a ser, a baixa qualidade das ocupações disponíveis para a maior parte dessa mão-de-obra, dado o seu precaríssimo preparo, como observou o economista Marcelo Néri, chefe do Centro de Estudos Sociais da FGV.

Mais do que os números da pobreza, são esses os dados que o governo deveria levar em conta, ao formular qualquer política de desenvolvimento econômico e social. A ajuda financeira a essas famílias é indispensável, a curto prazo, para garantir sua sobrevivência, mas não vai contribuir para a redução dos níveis de pobreza no Brasil. Pode até melhorar, de imediato, a distribuição de renda, mas não cria as condições indispensáveis para que haja ascensão social.

No papel, programas como o Bolsa-Família incluem, além da transferência de dinheiro, obrigações para os beneficiários, como o envio de crianças à escola. Mas nem sempre as famílias cumprem essas exigências e nem todas as autoridades fiscalizam o seu cumprimento.

O analfabetismo, calculado segundo os tolerantes padrões oficiais, é muito maior entre as pessoas atendidas pelos programas de transferência. Há 6% de analfabetos entre as crianças de 10 a 14 anos do grupo das beneficiadas. A proporção cai para 2,4% entre as crianças da mesma faixa etária, no caso das famílias que não receberam dinheiro dos programas. A diferença continua muito alta quando se consideram as pessoas de 15 anos ou mais: 21,6% no primeiro grupo, 9,1% no outro.

O despreparo para o trabalho, portanto, é uma das características principais da população ajudada pelas transferências de dinheiro: cerca de um quinto das pessoas com 15 anos ou mais não podem ser consideradas alfabetizadas. Sua produtividade é inevitavelmente muito limitada e suas possibilidades de progredir na vida, muito restritas. No campo, não sairão da miséria por meio da simples distribuição de terras. Na cidade, não terão grandes oportunidades pela criação de postos na indústria ou nos serviços modernos.

Na agropecuária ou nas atividades urbanas, essas pessoas continuarão condenadas à marginalização, pois não conseguem acompanhar a evolução das técnicas de produção. Nem mesmo as atividades que há 40 ou 50 anos permitiam acomodar nas cidades os grupos originários do campo cumpririam hoje essa função. A tecnologia da construção civil requer trabalhadores com novas qualificações. Na indústria, as funções mais simples foram terceirizadas, com remuneração muito mais baixa que a dos operários fabris.

Garantidas as condições básicas de sobrevivência, a tarefa mais urgente de inclusão social, portanto, deve ser a elevação da capacidade de trabalho das populações mais pobres. Qualquer política distributiva que passe longe da elevação dos níveis de educação não irá além do assistencialismo.

Isso pode ser uma obviedade, mas o governo foi incapaz de percebê-la, quando definiu, há três anos, suas políticas de inclusão social. Chegou-se a discutir o problema da fome como se houvesse escassez de comida. O presidente Lula demorou a perceber que a oferta de alimentos no Brasil é mais que suficiente e pode ser ampliada sem dificuldade, porque os produtores modernos - grandes ou pequenos - estão capacitados para isso.

O problema era outro: milhões de brasileiros carecem de rendimento suficiente para viver com decência por falta do preparo mínimo indispensável para se integrar numa sociedade moderna.