Título: A dança da impunidade
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/03/2006, Notas e Informações, p. A3

A irritação exibida pelo relator da CPI dos Correios, deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR), em relação às inúmeras pressões que tem recebido para modificar o relatório final da comissão, com apresentação prevista para terça-feira, parece tão sincera quanto inócua. Depois de ter anunciado, na semana passada, que iria propor o indiciamento do ex-ministro da Secretaria de Comunicação da Presidência (Secon) e atual Chefe de Assuntos Estratégicos (NAE), Luiz Gushiken, por irregularidades em contratos de publicidade com estatais, Serraglio anuncia agora que excluirá Gushiken de seu relatório.

É que a idéia desse indiciamento se baseava em relatório da Controladoria-Geral da União (CGU), que recebeu "nova versão" de seu ministro responsável, Waldir Pires, poupando Gushiken. Que argumentos teriam surgido para anular a primeira versão da CGU? Ainda não ocorreu ao deputado explicar. Sabe-se apenas que a cúpula dessa comissão trabalha para tornar o texto de seu relatório final escoimado de adjetivações - certamente para fazê-lo mais "técnico", quem sabe desidratado de quaisquer conotações "políticas".

Diga-se, a propósito, que o objetivo de "limpar" as CPIs de conotações políticas se tornou uma das maiores preocupações dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) cinco dos quais se permitiram falar alto (fora dos autos) contra a "exclusiva" finalidade de "exploração eleitoral" daquelas comissões. Não que deixe de haver um certo exibicionismo e uma contundência crítica, no trabalho das CPIs, que possam servir a exploração político-eleitoral de parte a parte, ou seja, entre governo e oposição. Mas será que as CPIs se esgotam nisso? E quanto de sua eficiência investigativa não tem sido prejudicada pelas liminares cerceadoras do próprio Supremo - nas quais muitos também enxergam conotação política?

De qualquer forma, explorações político-eleitorais e cerceamentos judiciais à parte, há que se considerar que o resultado do trabalho das recentes e atuais CPIs, tanto quanto do Conselho de Ética da Câmara dos Deputados, longe está das expectativas da sociedade brasileira. Mas a decepção maior é causada pelos ilustres deputados que, por votação secreta em plenário, participam dos "acordões" absolutórios interpartidários, poupando a grande maioria dos acusados "mensaleiros", tanto que, até agora, para sete absolvidos e quatro renunciantes, apenas três foram cassados, justamente aqueles referidos por Roberto Jefferson (PTB-RJ): ele mesmo, José Dirceu (PT-SP) e Pedro Correia (PP-PE), típicos bois de piranha, sacrificados para a salvação da manada mensaleira. Não é sem razão, portanto, que José Dirceu já esteja tomando providências para recuperar - via STF, como não poderia deixar de ser - o mandato perdido, o que estimulará seus solitários companheiros de cassação a fazer o mesmo. Afinal de contas, por que só eles deverão ficar fora da animada festa da impunidade mensaleira?

Essa festa, aliás, teve como símbolo mais emblemático a dança, em pleno recinto do plenário da Câmara dos Deputados, da deputada Ângela Guadagnin (PT-SP), em comemoração à absolvição do correligionário João Magno (PT-MT) - que confessara ter recebido R$ 425,95 mil do "valerioduto". Reconheça-se que, se há alguém com o direito de comemorar, efusivamente, a vitória da impunidade global é a deputada Guadagnin. Afinal, foi justamente ela aquela prefeita de São José dos Campos (1993-1996), cuja gestão se tornou objeto das primeiras denúncias de utilização da máquina administrativa para a obtenção ilícita de financiamento eleitoral, em favor do PT - as famosas denúncias feitas por Paulo de Tarso Venceslau, que resultaram apenas em sua expulsão do partido, casos esses precursores da tragédia de Celso Daniel e do drama do ex-prefeito de Ribeirão Preto Antonio Palocci.

Reconheça-se que, em termos de cenas emblemáticas que por muito tempo marcarão uma era política, a debochada dança da impunidade de Guadagnin concorre com o flagrante televisivo de Waldomiro Diniz achacando o bicheiro Carlinhos Cachoeira, assim como com a do esguicho animado do Delúbio e a dos famosos dólares na cueca. Dizer qual a mais representativa é uma questão de gosto...