Título: Função civilizadora da mulher
Autor: Gilberto de Mello Kujawski
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/03/2006, Espaço Aberto, p. A2

Para começo de conversa, foi a mulher que inventou o trabalho. Este nunca foi o forte do homem. O macho da espécie humana é caçador, pescador, navegador; prefere depois a política, a ciência, a arte, os negócios. O homem tem alma aventureira e visionária, vive sempre projetado para a distância. A mulher foi quem primeiro cuidou da fiação, da cozinha, do trabalho no campo, a agricultura.

Como se não bastasse, a mulher criou também o lazer, em sentido bem mais amplo e complexo que o simples descanso do guerreiro. A mulher trouxe o macho para perto dela e dos filhos, domesticou-o, ensinou-o a gozar o repouso, os jogos que o prendiam ao lar, e, depois, o instruiu em outras atividades lúdicas superiores, como os torneios a cavalo, na Idade Média, mesclando a valentia dos competidores com a galanteria, bem como inventou para os cavaleiros torneios mais refinados, de natureza literária.

O papel feminino na Grécia clássica e em Roma é freqüentemente ignorado, generalizando-se a idéia de que a mulher no mundo antigo estava condenada à submissão e à procriação. Nada mais falso. O feminino foi uma força propulsora irresistível entre gregos e romanos. Na Ilíada, a ação épica se desencadeia a partir da cólera de Aquiles quando lhe arrebataram sua bem-amada Críseis. O pivô da Guerra de Tróia foi Helena, seqüestrada por Páris de seu esposo, Menelau. A luz irradiada pela figura auroral da deusa Afrodite (ou Vênus) se expande por toda a Grécia. A Odisséia está povoada por mulheres como Circe, Calipso, Nausícaa e Penélope, cada uma com seu matiz de feminilidade. E Safo, apaixonada pelo jovem Fáon a ponto de suicidar-se, ministrou à mulher helênica finas lições de erotismo. Em Roma, a situação da mulher não deve ser conhecida só pelos costumes e pelo direito, que limitavam a matrona a um comportamento estreitamente doméstico. O espaço ocupado em Roma pela mulher está na obra dos poetas líricos como Ovídio, Tíbulo, Propércio e Catulo. Nestes a mulher surge em primeiro plano como pólo de paixão amorosa e íntimo erotismo. E que dizer de tantas figuras femininas, em Roma, participando do poder e da cultura, como Lívia, a mulher de Augusto, padrão de sabedoria e dignidade, consultada sobre questões de governo, ou Júlia Domna, de origem síria, mulher do imperador Sétimo Severo, famosa pela beleza e inteligência?

Mas foi na Idade Média - na tão caluniada Idade Média - que a mulher tomou a dianteira na educação sentimental do Ocidente. No século 12, as senhoras da aristocracia, cansadas da proximidade com seus senhores rudes e brutais, esfalfados na caça ao javali, em comezainas e bebedeiras, implantaram, na Provença e na Borgonha, as chamadas cortes, círculos de convivência entre o homem e a mulher onde se cultivavam a conversação, a galanteria e os torneios literários. Estava criada a corte de amor, do amor cortês, que contribuiu, ainda mais do que a Igreja, para humanizar e civilizar os barões medievais. As cortes, especialmente na Provença, tornaram possível um novo perfil de mulher, a "dama", a qual, por sua vez, haveria de forjar o novo tipo masculino, o "cavalheiro", ao exigir do homem que fosse "prou et courtois" (bravo e polido). Foi a mulher que criou o modelo do cavalheiro, que haveria de dominar na sociedade ocidental até ontem.

As cortes de amor, inspiradas pela mulher, impuseram ao Ocidente um novo ideal de vida, em que se respiravam boas maneiras, sensibilidade estética e idealismo, os traços característicos da maneira de ser cavalheiresca, na qual se educaram o homem europeu e seus descendentes nas Américas. Não foi pouca coisa. Notam os historiadores que da "cortesia" saíram São Francisco e Dante, a corte papal de Avignon e o Renascimento. Em Dante (século 14) culmina o amor cortês: "Amore e cor gentil sono una cosa", ou, de maneira mais enérgica, "l'amor che move il sole e l'altre stelle".

Não há como fugir. Ao longo da História, foi a mulher a principal educadora do homem. Ortega atina com a fórmula certeira: a mulher como norma foi, segundo ele, a magna descoberta de Dante, no rastro da cortesia provençal. A mulher como norma! Aproveitando a deixa, não caberia deduzir, então, que o papel próprio da mulher é ser a grande "mediadora" em todos os setores? Mediadora entre a barbárie e a civilização, entre a tirania e a justiça, como Antígona, o ideal e o conformismo, a beleza e o prosaísmo, o Céu e a Terra, como Nossa Senhora. Será que hoje a mulher está cumprindo sua função mediadora na História? Será que o feminismo não se satisfaz com pouco ao exigir para a mulher seus "direitos", quando deveria lutar por algo mais amplo, ou seja, a apropriação do seu projeto, o projeto de mediação universal entre a deficiência e a otimização das coisas?

Qual o modo específico da ação feminina na História? Tema delicado, que foi muito bem posto por Ortega. Não se atribuam à mulher formas parecidas com a ação varonil. O homem é espetaculoso e retórico, desencadeia tempestades e terremotos na busca de resultados. A mulher, não, seu estilo é passar despercebida, discreta, baixo perfil, afirmando-se menos no "fazer" e mais no "ser e no estar". A mulher se impõe pela simples presença, mais do que pela palavra ou pela ação. Seu estilo é o dessas substâncias que não agem diretamente sobre as outras, mas que só com sua presença aceleram as reações químicas, catálise. O mestre espanhol, unindo sabedoria e estilo, como sempre, diz melhor: "A influência da mulher é pouco visível precisamente porque é difusa e se acha em todo lugar. Não é turbulenta, como a do homem, e sim estática, como a da atmosfera. Há, evidentemente, na essência feminina, uma índole atmosférica que opera lentamente, à maneira do clima" (Ortega y Gasset).

Curiosidade: este artigo é de direita ou de esquerda, "conservador" ou "progressista"?

Gilberto de Mello Kujawski