Título: O mensalão e a chicana jurídica
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/04/2006, Notas e Informações, p. A3

Justiça morosa é denegação de justiça, costumam ensinar os professores de direito nas aulas introdutórias aos calouros. Uma demonstração prática dessa lição acaba de ser dada pelo ministro Joaquim Barbosa, que é o relator, no Supremo Tribunal Federal (STF), da denúncia encaminhada pelo procurador-geral da República contra 40 ex-ministros, deputados, assessores e empresários acusados de envolvimento no caso do mensalão. Ao avaliar a tramitação do caso, que está embasado num inquérito criminal com 5 mil páginas, 65 volumes de anexos e 8 caixas de documentos, o ministro deixou claro que a sentença definitiva dificilmente será prolatada antes de três ou quatro anos.

Só a fase preliminar, que envolve a notificação e o indiciamento dos acusados, além do acesso de seus advogados aos autos, deve consumir um ano e meio. Terminada essa etapa, o STF terá de decidir se converte ou não a denúncia da Procuradoria-Geral da República em ação penal. Mas os advogados poderão retardar essa decisão, questionando a autenticidade dos documentos encaminhados pela corte, pedindo perícias contábeis, invocando problemas formais na notificação de seus clientes ou protocolando "pedidos de vista".

Caso o STF acolha a denúncia do procurador-geral da República, decisão que pode demorar até dois anos para ser tomada, os acusados finalmente poderão ser chamados de réus e terão novamente de ser citados, desta vez para o interrogatório. Depois de serem ouvidos, seus advogados têm cinco dias para a defesa prévia e, em seguida, são chamadas as testemunhas de acusação e de defesa. Até o momento, a Procuradoria-Geral da República arrolou 41 testemunhas de acusação. E, como cada réu pode chamar 8 testemunhas de defesa, ao todo os 40 réus podem convocar 320 pessoas para depor em seu favor. A partir daí, os réus também terão direito de requerer as diligências que julgarem necessárias para tentar comprovar sua inocência, abrindo-se então o prazo de 15 dias para a apresentação das alegações finais.

Só nesse momento é que o STF começará a julgar o caso no mérito. Nesta fase, os advogados de defesa têm uma hora para fazer sustentação oral. Como são 40 réus, isso consumirá várias sessões plenárias da corte. Terminadas as 40 sustentações, cada um dos 11 ministros dará seu voto sobre cada um dos 40 acusados, o que poderá se arrastar por algumas sessões.

Cada uma das etapas do julgamento desse processo, como se vê, poderá se subdividir em várias outras. Em cada uma dessas fases os advogados contam com vários recursos judiciais à sua disposição, podendo, entre outras medidas cautelares, propor acareações, pedir habeas-corpus e requerer a suspensão do processo. E o relator não pode pular essas etapas, para tentar acelerar o julgamento, sob pena de tudo ser anulado por algum vício de caráter formal.

A origem do problema está no anacronismo do Código de Processo Penal (CPP), que foi editado em 1941 pela ditadura varguista. Com seu intricado sistema de prazos e recursos, o CPP se caracteriza pelo excesso de formalismo. Justificado em nome do "garantismo", princípio jurídico surgido com o pensamento iluminista do século 17, e que garante amplo direito de defesa aos réus, esse formalismo acabou distorcendo a própria ordem jurídica. O grande número de recursos desloca as discussões para aspectos processuais. Com isso, os juízes enfrentam dificuldades para decidir as ações no mérito e os advogados se valem de medidas protelatórias para trancar os processos até sua prescrição, desmoralizando a Justiça.

Embora nos tribunais a praxe seja os juízes não fazerem comentários sobre ações sob sua responsabilidade, Barbosa foi sensato ao manifestar seu temor com relação à trajetória da ação do mensalão e reconhecer que o STF não tem estrutura para julgar o caso. Dadas as medidas protelatórias que os advogados dos 40 acusados de envolvimento com o mensalão certamente irão usar, para garantir a impunidade de seus clientes, a esclarecedora entrevista do ministro deixa uma lição. Para o País ter instituições realmente aptas a zelar pela moralidade pública e coibir a corrupção, é preciso modernizar urgentemente a legislação processual, reduzindo o número de recursos e assegurando maior objetividade e rapidez na tramitação das ações.