Título: FHC se revê como político e sociólogo
Autor: Carlos Marchi
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/04/2006, Nacional, p. A17

Em "A Arte da Política - A História que Vivi", ex-presidente dá testemunho do complexo jogo do poder

O maior engano de um presidente é imaginar que, sozinho, pode tudo, afirma o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso no livro A Arte da Política - A História que Vivi, recém-lançado pela Editora Civilização Brasileira. E complementa o ensinamento: "Por outro lado, se o presidente se entrega ao Congresso, está perdido." No livro, ele funde em dosagem equilibrada as visões do político e do sociólogo, num exercício de maturidade política e erudição.

Estruturado a partir de gravações que o então presidente fazia todos os dias, com elogiável preocupação historiográfica, o livro é um manual indispensável para os candidatos a cargos políticos, em especial os majoritários de qualquer nível. Mas é, também, um testemunho cru da extraordinária complexidade do jogo político que envolve um presidente. Por último, é uma base historiográfica para consolidar, no futuro, as interpretações sobre a trajetória política do autor.

O LEGADO

Fernando Henrique escreveu preocupado com seu legado. Ele descreve "a sensação agônica a pagar por quem se lança à vida pública: o juízo que conta é o da História, e a ele os personagens não assistem". Depois de uma introdução vigorosa, o autor oferece ao leitor uma atraente proposta - a interpretação da evolução política nos anos da ditadura militar, devidamente temperados por uma deliciosa fusão dos conselhos de Maquiavel com os ensinamentos de Max Weber.

Ele analisa os fundamentos da prática política contemporânea e conclui que a grande causa dos políticos de sua geração não é a estabilidade, mas o compromisso com a democracia. E sugere que as novas formas de organização da sociedade - com papel ativo para as ONGs e a internet - ampliam o foco da ação dos governantes.

Descreve com paixão a lenta estruturação da luta contra a ditadura, realçando sua inegável origem na esquerda. E, se não o fora como presidente, dá pistas de que continua engajado como sociólogo: rejeita continuamente o rótulo de "neoliberal" e dedica apostos críticos à alma do neoliberalismo, o mercado. Chama-o de "demiurgo contemporâneo"; trata-o como "esse personagem de má catadura"; adiante, como "essa fera temida"; e, por último, como "essa enteléquia" (enigma).

Fernando Henrique dá sua versão para contestar os episódios mais desgastantes de sua passagem pela Presidência. No rumoroso caso da quebra do Banco Econômico, subjacente ao relato está a preocupação em preservar-se ante a ação agressiva do senador Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA), que comandou a tropa de choque contra a liquidação do banco. O relato, no entanto, não menciona que o governo da Bahia encampou o banco por R$ 1 e dias depois desistiu do negócio.

O livro chega a ensaiar conselhos, à guisa do Príncipe. O ex-presidente sugere que a primeira tarefa do governante é definir o inner circle (o "núcleo duro"). E aponta condições elementares para apurar o sentimento democrático de alguém: "abertura mental", comportamento tolerante, aceitação do outro e da diversidade político-cultural.

O livro traz revelações deliciosas, como sucessivos e civilizados encontros com o ex-ministro José Dirceu para discutir temas delicados. Ou o tratamento que o ex-presidente Bill Clinton sempre lhe deu - "Henrique". Ou a preocupação de Clinton - o que podia fazer para ajudá-lo na eleição. Cavalgar, na campanha de 1994, não foi novidade, porque sempre soube montar bem. É "louco" por um sonho de padaria. Na primeira candidatura ao Senado, em 1978, teve o apoio de Lula. Foi o candidato de Itamar, em 1994, sem que nunca tivessem trocado uma palavra sobre isso.

Mas tem dois pecados veniais. Um é que a mixagem de teoria e prática políticas, que impressiona no começo, acaba no capítulo 5 e o livro se torna um relatório massudo dos posicionamentos do governo FHC.

Outro é que a opção de embaralhar a ordem cronológica tonteia o leitor leigo. Luís Eduardo Magalhães, morto na página 317, ressuscita 40 páginas adiante como ativo personagem da crise do Econômico. Na página 404 Gustavo Franco pensava placidamente em sair do Banco Central para dirigir a empresa da mulher; duas páginas depois estava sendo defenestrado pelo próprio Fernando Henrique, por recusar-se a aceitar as minidesvalorizações do dólar.

É generoso com Lula ao atribuir relevo às greves do ABC para a redemocratização, mas cortante ao lembrar que foi Benedito Marcílio, líder metalúrgico de Santo André, e não Lula, quem lançou a idéia do PT. Revela que a primeira discordância com Lula surgiu na eleição de Tancredo Neves. Lista, com abundância, temas que o PT e Lula rejeitaram discutir e hoje, no governo, aprovam e praticam. Lamenta ter sofrido o "risco Lula" e diz que terminou o governo rompido com as principais oligarquias. "Não poderia imaginar que o PT, vitorioso, iria reerguer o prestígio de muitos anjos decaídos do poder..."