Título: Os fugitivos da verdade
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/04/2006, Notas e Informações, p. A3

O vexame protagonizado quinta-feira pelo presidente do Sebrae, Paulo Okamotto, quando foi flagrado se escondendo do escrivão que fora intimá-lo a participar da acareação com o ex-companheiro Paulo de Tarso Venceslau, na CPI dos Bingos, assim como a desculpa do ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci para não ter que depor na sexta à Polícia Federal - "recomendação médica de permanecer em repouso", segundo seu advogado -, fecharam uma das mais vergonhosas semanas já vividas pelo sistema petista de poder desde a posse do presidente Lula.

Okamotto mandou dizer que estava viajando para não receber pessoalmente a intimação. Fez o que faria qualquer devedor relapso. Prova de que a mentira tem pernas curtas, o meirinho que tinha ido entregar-lhe o papel o viu logo depois em seu gabinete, ao qual retornara para exigir de sua secretária a correção do "recebido" que apusera na cópia da intimação, que ela rasurara propositadamente. Palocci, por sua vez, mandou dizer que estava com pressão alta e estressado. E, de fato, o policial que foi a sua casa o viu tirando sangue para exames.

Motivos para estresse o ex-ministro os tem de sobra - sendo o principal deles o conjunto de indícios incisivos de que, em parceria com o então presidente da Caixa Econômica Federal, Jorge Mattoso, ele tomou a decisão de bisbilhotar ilegalmente a conta poupança do caseiro Francenildo Costa. Divulgou-se, sem contestação, que ambos estiveram reunidos no Palácio do Planalto horas antes do crime. Mattoso saiu dali diretamente para comandar o acesso indevido à conta do correntista que disse ter visto Palocci "umas 10 ou 20 vezes" na afamada casa onde ele garantiu nunca ter estado.

E foi gente da Fazenda que, ao que tudo indica por ordens do ainda ministro, repassou à imprensa os extratos cuja divulgação deveria servir para desmoralizar Francenildo - consumando assim a violação do seu sigilo bancário. O que une Okamotto, Mattoso e Palocci, além de serem todos membros estrelados do partido cujas vestes éticas o mensalão deixou rotas, é a naturalidade, espantosa mesmo para os padrões da hierarquia petista, com que tomam liberdades com a verdade, quando não mentem de forma deslavada, certos de que se exibem para uma platéia de tapados.

A nota em que Mattoso anuncia a sua demissão, a carta em que Palocci "pede" a Lula o seu "afastamento" e os discursos de ambos na transmissão do cargo a Guido Mantega têm lugar assegurado em qualquer antologia sobre o exercício imitigado da mistificação nos altos escalões do governo e do seu partido. Mattoso teve a caradura de escrever que agiu "nos estritos limites da legalidade" ao espionar a conta do caseiro e ao entregar a Palocci o produto da invasão.

Nenhuma palavra, é claro, sobre o teatro de que a Caixa Econômica Federal investigaria o caso em até 15 dias, quando ninguém mais do que ele sabia tudo, desde sempre, sobre o delito.

De seu lado, o mesmo Palocci que corre o risco de ser processado por crime de responsabilidade, prevaricação e condescendência criminosa se declarou conhecedor "das regras da democracia e do Estado de direito" para apregoar inocência. Pior foi a tônica da sua despedida. Se solicitou o seu "afastamento definitivo" do Ministério da Fazenda, declarou, foi para contribuir para a pacificação do País "frente ao quadro conflituoso e tenso". Mas o ficcionista Palocci ainda tem muito a aprender - com o seu ex-chefe, que o metamorfoseou em vítima achincalhada de "leviandades e acusações".

O presidente compôs uma elegia ao ex-ministro, a quem chamou "grande irmão", e louvou a ética do companheirismo para ocultar o dissídio irrevogável entre o seu governo e os princípios éticos pelos quais deveria se conduzir. Nesse sentido, Lula é outro fugitivo da verdade.

Tudo isso, evidentemente, tem uma lógica que vai além da aposta na impunidade pessoal, no caso de Okamotto, Mattoso e Palocci. Quanto mais se aproxima a sucessão, mais o presidente e o seu partido precisam remover das vistas do eleitor as evidências do seu descaso pelos valores da moralidade pública que diziam professar.

Para tanto, empenham-se em ganhar tempo, contando com a natural fadiga da opinião pública diante da sucessão de escândalos que os assediam. Especialmente o da Caixa Econômica Federal, que se distingue dos demais pelo inusitado da brutal represália da elite petista contra um trabalhador que falou a verdade.