Título: Ministra preside. Deputada dança
Autor: Laura Greenhalgh
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/04/2006, Aliás, p. J6

E índia não leva o prêmio. Em três histórias, o jogo de espelhos no qual se projeta a identidade feminina

Como coincidências tecem a História, vale frisar que os três fatos aconteceram na quinta-feira, 30 de março. A ministra Ellen Gracie Northfleet não abdicou de sua decantada elegância para ir ao trabalho. Ao contrário.Vestiu um tailleur em xadrez preto e branco, e assim chegou ao Supremo Tribunal Federal. Na abertura da sessão, a primeira que conduziu do início ao fim já como presidente interina da casa, vislumbrou-se a mulher no comando de um poder da República. O feito será oficializado em 27 de abril, quando a ministra passará de interina a efetiva. No Congresso, na mesma quinta, a deputada petista Angela Guadagnin era afastada do Conselho de Ética da Câmara, sob efeito do repúdio nacional ao solo que fez para a "dança da pizza". E, à noite, no Museu da Casa Brasileira, em São Paulo, 52 mulheres, de lavradoras a cientistas, receberam homenagens no lançamento do livro Brasileiras Guerreiras da Paz. O que uma coisa tem a ver com a outra? É o que se verá.

Os três eventos tratam de algo que os cientistas sociais definiriam como a evolução da identidade feminina. Se entendermos por identidade "o sentimento que emerge do processo social pelo qual um se reconhece no outro", usando aqui a definição providencial da socióloga Lúcia Avelar, então falamos idealmente daquele jogo de espelhos em que milhões de brasileiras se projetam no tailleur da presidente do Supremo, no surto coreográfico da deputada em plenário ou no mulherio em festa no museu - projetam para aprovar ou desaprovar a imagem refletida. É como se nós, mulheres, tivéssemos nos perguntado esta semana: fico bem, sentada ali naquela cadeira, comandando magistrados? Ou: como me saio requebrando pela absolvição de um envolvido no mensalão?

A primeira presidente do Supremo, 58 anos, carioca de nascimento e gaúcha de coração, tocou a sessão como se nada houvesse de excepcional, ocupando a cadeira que foi de Nelson Jobim até dias atrás. Ellen Gracie "chegou lá" guindada por dois critérios internos: antiguidade na casa e ineditismo na função (nunca assumira a presidência). Por dois anos, estará à frente de um dos Três Poderes e será a quarta autoridade na linha sucessória da Presidência da República, situação inédita em 506 anos de Brasil. Por que, então, as feministas não saíram às ruas para festejar? A pergunta é óbvia, mas a resposta, nem tanto. Porque têm preferido celebrar com uma dose de discrição e duas de cautela, foi o que se apurou. No geral, dizem que a ministra não definiu um padrão de apoio às causas das mulheres. É vista como a coroação de um longo processo de lutas emancipatórias no Brasil, mas, desconfiam as feministas, pode não querer carregar o peso da bandeira.

Vem daí a relação curiosa entre militantes e a nova chefe do Judiciário - relação de duplo estranhamento. Ao se manifestar sobre o crime de estupro, em 2001, Ellen Gracie solicitou fundamentos a pesquisadoras feministas para compor uma relatoria impecável: O delito de que estamos tratando é daqueles que, por suas características de aberração e de desrespeito à dignidade humana, causam tão grande repulsa que as próprias vítimas, em regra, preferem ocultá-lo e a sociedade, em geral, prefere relegar a uma semiconsciência. Concluiu pedindo que os colegas repelissem a idéia de afastar o estupro do rol dos crimes hediondos. Por outro lado, em 2005, votou contra a ADPF (argüição de descumprimento de preceito fundamental) que abriria a discussão no Supremo para a legalização do aborto de fetos anencefálicos.

Indagada sobre para que lado penderá Ellen Gracie, a cientista política Maria Tereza Sadek, estudiosa do Judiciário, evitou dar palpite: "Não tenho dúvida do peso simbólico da escolha da ministra. Mas tenho dúvidas se ela vai ou não imprimir um traço feminino à presidência do Supremo. Primeiro, porque tem tido perfil técnico. Depois, porque precisa julgar questões diversas, não apenas temas de interesse da mulher. Por fim, porque as mulheres tendem a ficar mais rígidas que os homens quando chegam ao topo". Maria Tereza divulgou recentemente uma ampla pesquisa encomendada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). Radiografia e tanto do setor. Por ela fica-se sabendo que o crescimento do feminino no Judiciário é caminho sem volta. Dizia um estudo de 1973 que 89% da magistratura brasileira concentrava-se nas mãos dos homens. Hoje, segundo a pesquisa da AMB, o índice caiu para 77%. Nos juizados especiais, as mulheres chegam a 37%. E vai se confirmando a feminização nas críticas inflamadas ao nepotismo, à atuação da OAB ou à falta de aprimoramento profissional dos advogados. Jovens juízas, pelo que se sabe, botam para quebrar.

Já no Parlamento a expansão é mais antiga, porém com índices medíocres se comparados aos de países latino-americanos. Enquanto aqui as mulheres são 8,1% dos deputados federais, no Chile são 12,5%, no México, 22,6%, na Argentina, 33,7% . Quer dizer, tem espaço a conquistar no Brasil. Nessa perspectiva, quando a deputada dança de alegria pela absolvição de um colega implicado em denúncias, insultando um país já farto de escândalos e privilégios auto-outorgados pela classe política, dançam com ela milhões de brasileiras, construtoras de uma identidade. Ou seja, no ethos político, "dançamos" todas. Sobre como tem sido percebida a parlamentar do PT, Guacira de Oliveira, coordenadora do Cfêmea, ONG que há anos vem monitorando a bancada feminina no Congresso, dá a seguinte explicação: "O sentimento geral é de que a falta de decoro não se resume à rodadinha no plenário. Mas exalta o fato de uma deputada comportar-se como leoa-de-chácara do governo, na defesa de qualquer estupidez ou trambique".

De identidade e ethos político, em que pesem as diferentes biografias, tanto a ministra quanto a deputada teriam a aprender com o Projeto 1000 Mulheres, coordenado por Clara Charf, uma ativista de 80 anos, do qual resultou o livro Brasileiras Guerreiras da Paz (Ed. Contexto, já à venda). O projeto nasceu na Suíça com a idéia de lançar uma candidatura coletiva ao Nobel da Paz de 2005, em nome de mil mulheres vindas de todas as partes do mundo - mulheres cuja vida tem sido de combate à desigualdade e busca da segurança humana. Coube ao Brasil indicar 52 nomes, num processo de seleção democrático que veio pelo curso dos movimentos sociais. Mas o comitê internacional do prêmio, fazendo jus a injustiças históricas contra várias cientistas (vide a exclusão da física vienense Lise Meitner do Nobel de 1944, ou da sua colega americana Jocelyn Bell Burnell, em 1974), concedeu o prêmio à Agência Internacional de Energia Atômica e seu diretor, o egípcio Mohamed El Baradei. Vexame: o que poderia ser um basta mundial ao fundamentalismo, à guerra e ao terror foi ignorado pelo comitê de Oslo.

O livro conta a trajetória das 52 brasileiras, em textos saborosos, assinados por três jornalistas - Carla Rodrigues, Fernanda Pompeu e Patrícia Negrão. Num dos capítulos, prova-se da história de Joênia Batista Carvalho, 31 anos, da etnia uapixana, primeira mulher indígena a se formar em Direito no Brasil. Até os 8 anos, Joênia viveu de aldeia em aldeia, em Roraima. Então a mãe resolveu levar a prole para Boa Vista, ganhando a vida como vendedora ambulante de banana, farinha e vinho de buriti. Joênia estudou debaixo da gozação dos colegas ("porque morávamos em casa de palha"), mas entrou em quinto lugar na faculdade de Direito da Universidade Federal de Roraima. Duvidou-se que chegaria ao fim do curso. Chegou. Duvidou-se que conseguiria se estabelecer como advogada. Conseguiu - hoje dá assistência jurídica a 280 comunidades indígenas. Duvidou-se que sua voz seria ouvida no mundo. Em 2004, ela denunciou na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, em Washington, a lentidão do governo brasileiro em homologar a reserva Raposa Serra do Sol, no noroeste de Roraima. A homologação veio em abril de 2005. Joênia não veste tailleur nem dança em serviço.