Título: Mais ética, menos circo
Autor: Mônica Manir
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/04/2006, Aliás, p. J4

As trapalhadas dos últimos dias levam Dallari a reclamar: os meios precisam ser compatíveis com os fins

Quando o assunto à mesa é ética, o jurista Dalmo de Abreu Dallari quebra seu sigilo pessoal em dois tempos. Recém-chegado da França, onde passou três meses ministrando palestras como coordenador da Cátedra Unesco de Educação pela Paz, Direitos Humanos, Democracia e Tolerância, ele se mostra intolerante com quem desmerece o outro e cai na tentação do egoísmo essencial. Intolerante talvez não seja a palavra. Crítico veste melhor esse paulista de Serra Negra, filho de imigrantes italianos, que fez madureza e teve a ousadia, como ele diz, de chegar a diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Pela sua intimidade com os integrantes do PT, muitos o juram filiado do partido. Mas Dallari nunca aceitou o convite, pela crença de que seria melhor não se vincular se quisesse manter a independência. Numa semana de trocas de ministros, relatório de CPI, rechaço ao samba da pizza e hosana ao caseiro, ele aponta os vácuos éticos do governo, sem poupar o eleitor e sua moral flutuante. "Não existe isso de uma ética para o cidadão e outra para o indivíduo", diz. "A ética é universal."

Há 26 anos, o senhor se recusou a ser um dos fundadores do PT dizendo que preferia não entrar no partido para não ter de sair dele. Se tivesse se filiado, já estaria fora?

Muito provavelmente, muito provavelmente. Já há alguns anos verifico desvios, com o partido se afastando dos seus objetivos programáticos, dos seus princípios básicos, da sua base popular. Nunca vi um partido com tamanho alicerce na população, uma base sólida, entusiasmada, otimista. O PT a abandonou completamente, passou a utilizar os mecanismos tradicionais de poder, como as elites tradicionais. Fui testemunha do processo que culminou na expulsão de Heloisa Helena. Achei que ela é quem estava coerente com os princípios do programa, não o partido. Por coisas assim é que prefiro não me filiar.

Qual foi o parafuso que espanou?

As pessoas se deslumbraram com a situação de poder. Um grande historiador e político inglês, Lord Acton, criou uma frase clássica nesse sentido: o poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente. Alguns afirmam que Acton pretendia dizer que o poder tende a corromper. Se as pessoas forem muito resistentes, não entram no jogo. De fato, existem partidários do PT que tiveram a oportunidade de ser cooptados pelo esquema e se recusaram. Frei Betto, por exemplo. A certa altura, sentiu que estava participando da reprodução dos vícios tradicionais e resolveu ir embora. Não declarou guerra ao PT, a Lula. Continua na sua luta pela ética, mas fora do esquema.

Para se manter ético, a alternativa é não fazer parte do poder?

Mas isso não significa acomodar-se ou renunciar à participação. É buscar outros meios. De qualquer maneira, a sociedade precisa do governo, e é necessário que alguém aceite participar dele. Eu não posso partir do pressuposto de que todos os políticos vão se corromper. O poder é uma tentação, um risco de corrupção, não uma fatalidade.

Há algum partido que represente a vontade do povo?

Um autor importante do século 18, David Hume, grande cientista político, classificou os partidos em três espécies. Há aqueles de princípios, que se constituem em função dos lemas que querem defender. A segunda espécie são partidos de interesses, que se organizam pensando em determinados objetivos. Pode ser um partido agrário, um partido de aposentados, como esse de Israel. O terceiro ele chama de partido de afeição, que engloba organizações devotadas a um líder. As pessoas mal sabem o que essa figura pensa, mas são fascinadas por ela e a acompanham. É típico do populismo. Hume lembra que são raros os que orientam sua vida por princípios. O que pesa são os interesses. E, por isso, os partidos, mesmo quando se dizem de princípios, acabam na prática sendo do segundo tipo. São sempre instrumento de proteção e promoção de determinados interesses. Não são universais.

O PT está mais para um grupo de interesse ou de afeição?

Para o de interesse. No original, ele visava ao direito dos trabalhadores, à correção das injustiças sociais, aos canais de igualdade social. O fato de ser de interesse não significa uma coisa negativa. Em relação a Lula, ele é um componente importante do PT, um elemento de afeição que, para muita gente, se tornou decisivo. Há petistas que estão lá porque o reconhecem como um grande líder. Mas não são a maioria.

Podem surgir desvios éticos para atingir o interesse?

Sim, o que é extremamente perigoso. Às vezes, a utilização de um caminho inadequado ou não previsto na legislação acaba se desviando da ética. É o caso do uso da violência para corrigir injustiças sociais. Ou então do terrorismo, um meio absolutamente inadequado. A quebra de sigilo sem autorização judicial, que ocorreu nesse episódio com o caseiro Francenildo Costa, também se encaixa aqui. Aparentemente ajudaria para o interesse, mas só aparentemente. O meio tem de ser compatível com o fim. Ninguém vai escolher um meio antiético para atingir um fim ético. É uma contradição.

Não lhe pareceu que muitos ficaram mais surpresos com a trapalhada do governo do que com a quebra do sigilo?

Sim. Questionou-se muito mais a falta de habilidade dos envolvidos. Isso não significa que as pessoas sejam a favor da quebra de sigilo. Mas a maneira como se tem conduzido a questão política nos últimos meses, na qual o circo interessa mais do que a essência, colocou na sombra a questão básica: o ato absolutamente inconstitucional e, claro, a necessidade de punição. No entanto, não se deve punir ninguém por suposição. A quem o crime aproveita? Ao Palocci? Então ele é o culpado? Uma das denúncias é que Palocci não ia àquela casa para receber dinheiro, mas para se encontrar com uma moça. Obviamente, isso deve ter um peso enorme na vida familiar dele, porém a gente não pode misturar as coisas. Estou convencido de que não houve participação do ex-ministro mandando obter dados. Acho, isso sim, que alguns foram mais realistas que o rei, pensando que assim o ajudariam, o que foi uma enorme tolice. Equívoco semelhante ocorreu com Getúlio Vargas e seu chefe de segurança, Gregório Fortunato, que resolveu mandar matar Carlos Lacerda. O tiro dado atingiu Getúlio, e não o jornalista.

O fato respingou na possível candidatura de Lula à Presidência?

Pelas últimas informações, não. Rigorosamente, Lula não tem nada a ver com isso. Na posse de Guido Mantega, ao chamar Palocci de grande irmão, Lula não fez elogio por erros cometidos. É preciso não esquecer que os dois, antes de personalidades políticas, são amigos há muitos anos. Esse conflito não eliminou a amizade. Tenho certeza que Lula sentiu que o amigo estava sendo crucificado e quis dar uma demonstração pública de apreço. Acho que foi muito mais uma manifestação afetiva do que um apoio político.

Com José Dirceu a postura não foi a mesma...

Não conhece os bastidores, mas é possível que tenha havido alguma situação de atrito entre eles, que não houve no caso Palocci.

Em ambos os casos, Lula se deixou enganar, como se fosse cômodo?

Os críticos dizem: "Ele tinha de saber". A lei diz que quem sabe de um crime é obrigado a denunciar, mas nós todos sabemos de vários delitos cometidos à nossa volta e não denunciamos. Bom, mas ele é o presidente da República! Como há autoridades que são especificamente responsáveis, Lula foi no limite razoável. Por isso a CPI não faz referência a ele. Do quanto eu conheço de Lula e da vida pública, sua grande preocupação é não ser pessoalmente envolvido nos escândalos. Diz não concordo, não dou apoio, não assino, não aprovo, não digo que estou a favor. Enquanto não chegar até mim, vocês é que são os responsáveis.

O presidente está só?

Sozinho não está. No momento, pode se sentir sem chão porque muitos ministros saíram de uma vez, mas essa aparente solidão é passageira. Aliás, há alguns que nem são fundadores do PT, que não vieram do movimento sindical, e são grandes companheiros. Marina Silva é um exemplo. Para mim, é uma figura extraordinária. Apesar das dificuldades e das divergências dentro do governo, mantém-se com uma dignidade, uma elegância e uma firmeza extraordinárias.

Faria diferença ao PT e ao presidente ter a intelectualidade mais perto?

Se o partido tivesse dado mais atenção a advertências que foram feitas, evitaria grande parte dos desvios éticos. No início do governo, criou-se o hábito em São Paulo de reunir personalidades do governo com intelectuais. Fui um dos convidados. Nas primeiras reuniões, o próprio Lula compareceu. Depois, não mais. Ministros também deixaram de vir. Os intelectuais sentiram que falavam para eles mesmos. Dizer o quê, se o governo desprezava tranqüilamente o que era dito? Alguns ficaram indignados e passaram a ser contra, o que considero uma posição perigosa e equivocada. Ao virar as costas para o governo, pura e simplesmente, o intelectual o isola e o obriga, de certo modo, a procurar amparo nos esquemas tradicionais. O governo precisa de uma base de apoio. Se não tem no povo, nos intelectuais, vai procurar essa base nos acordos partidários.

As CPIs têm cumprido seu papel?

Faço grande crítica às CPIs. O relatório da CPI dos Correios, por exemplo, não faz referência aos empresários que comprovadamente participaram dos fatos, especialmente diretores de bancos. Por que só o outro lado é incriminado? É uma falha gravíssima, que mostra a parcialidade da Comissão e enfraquece a acusação. Também não houve nenhuma iniciativa da oposição no sentido de mudanças nos esquemas. Por quê? Porque espera ser situação amanhã. Falou-se tanto em reforma política, mas qual foi a proposta da oposição para mudar, por exemplo, o sistema de financiamento de partidos e campanhas eleitorais? Nenhuma. Para ela, isso não interessa, mas interessa ao povo.

Palocci disse que as instituições políticas estão cravadas de ódio. A oposição está mais bélica do que nunca?

Há certa cegueira ética. Quando, por exemplo, o senador faz um discurso sobre os petistas dizendo que é preciso acabar com essa raça, é um exagero, um absurdo, é antidemocrático, incompatível com a responsabilidade de um homem público. O outro quer pegar o presidente a tapas e pontapés. Isso é de baixíssimo nível intelectual e é antiético. E, no entanto, passa como moeda corrente. Outra, uma deputada, chama o presidente da República de bandidão. O nível da disputa caiu muito.

Como o senhor avalia a "dança da pizza" de Angela Guadagnin?

Ela teve um comportamento absolutamente inadequado, mostrou falta de compostura. Não é uma atitude ética de um parlamentar. Ao demonstrar uma afetividade muito forte, perdeu a autoridade num conselho em que se espera certo distanciamento em relação aos colegas da Casa. Por isso acho que o afastamento foi razoável. Não vejo aqui um fundo de discriminação, como ela deu a entender, quando se disse discriminada "por ser mulher, gorda e do PT". Ela abriu a guarda, se entregou para apanhar, foi muito infeliz.

O caseiro Francenildo Costa, em contrapartida, é louvado...

Estão usando o caseiro, uma figura humilde, simples, como instrumento político. Ele, pessoalmente, não fez nada de importante, é um exagero. A vítima de uma ilegalidade vira herói nacional. O senador Antero Paes de Barros propôs, por exemplo, que se desse uma comenda a ele. Essa proposta é ridícula! Eis o circo.

Pesquisa recente do Ibope afirma que 75% dos entrevistados acreditam que cometeriam um dos atos de corrupção listados na enquete se estivessem no lugar dos políticos denunciados. Ao mesmo tempo, os governantes são vistos de forma extremamente negativa. Temos mais de uma ética em jogo, que varia segundo o interesse? Ou a ética é uma só?

Essa questão está sendo muito discutida no âmbito dos direitos humanos. Duas grandes correntes se definiram: uma diz que a ética é universal, que o ser humano é único. Ele tem diferenças culturais, que são conseqüência de circunstâncias históricas, políticas e até geográficas. Mas, na essência, todos têm as mesmas necessidades. Outra corrente fala num relativismo ético. Para esta, não existe ética universal. Diz que a ética se desenvolveu de maneira diferenciada em cada parte do mundo, e cada povo, cada etnia formou a sua própria. Essa argumentação tem sido bastante usada pelo mundo muçulmano, especialmente no tocante à situação da mulher. No costume deles, a mulher é submissa, e entende-se como violência querer implantar a ética universal. Há uma particularidade: a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, foi feita logo depois da 2ª Guerra pelas potências vencedoras. Os árabes argumentam que não participaram de sua elaboração. Então, não se sentem obrigados a segui-la. Chineses e japoneses também não participaram e não aceitam essa imposição.

O senhor acredita em qual ética?

Na universal, e trabalho por ela. Falo muito a respeito do assunto, falo onde me deixam falar, porque acredito que, se as pessoas forem conscientizadas, vão querer a ética universal. A relativa não convém a uma parte da humanidade, aquela colocada numa situação de dependência, num plano inferior. A ética universal beneficia a todos. Quem diz que faria uma coisa como indivíduo e outra como cidadão não está esclarecido. Não percebe que, agindo assim, está prejudicando a si mesmo.

Essa ética multifacetada leva o brasileiro a certa indiferença ou tolerância em relação às atitudes antiéticas do governo?

A indiferença também vem do egoísmo essencial. As pessoas não querem perder tempo trabalhando pela sociedade, cada um quer seu conforto, não admite deixar de ir à praia para discutir um assunto de grande interesse da sociedade. Outros conhecem a fragilidade de certas promessas e não se sentem traídos quando elas não são cumpridas. Quando o político que assinou um papel dizendo que não sairia do cargo até o fim do mandato sai antes, não é cobrado por isso. Essa decisão não influi sobre o eleitorado. Quando se fala em Legislativo, a apatia é ainda maior. Na tradição brasileira, sempre se disse que a escolha de parlamentares não tem importância. É um erro gravíssimo. Nossa Constituição, das mais avançadas do mundo, diz logo no artigo 1º que a democracia brasileira é, ao mesmo tempo, representativa e direta. Portanto, o povo deveria se preparar melhor para essa participação, ou direta ou escolhendo representantes. Mas não o faz. Na última turma para quem eu lecionei na Faculdade de Direito, perguntei quem se sentia representado pelos então deputados federais. Só um aluno levantou a mão: o pai dele era deputado. É um aspecto importante, grave, da nossa democracia. É preciso ter mais cuidado e deixar de fazer do jogo eleitoral um balcão de negócios.