Título: Eis o dilema: ser inteligente, honesto e do PT
Autor: Carlos Lessa
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/04/2006, Aliás, p. J5

Será possível ser os três ao mesmo tempo? Para os inimigos dos petistas, o partido é burro e desonesto

Dez anos atrás, evoquei em artigo de jornal conhecida piada italiana dos tempos do fascismo. Diz ela que qualquer cidadão pode ser inteligente, honesto e fascista. Só que as três coisas não vão juntas: se ele é inteligente e honesto, não é fascista; se é fascista e inteligente, não é honesto; se é honesto e fascista, não é inteligente.

A piada era lembrada a propósito de opções "realistas" do presidente Fernando Henrique, que, criticado, dissera havia pouco que "não é preciso ser burro para ser de esquerda". Como ele com certeza admitiria que tampouco é preciso ser burro para ser honesto, o artigo explorava certas dificuldades, para um líder peessedebista com a sua trajetória, de juntar a um tempo a honestidade, a inteligência requerida pela acuidade realista e as convicções socialdemocráticas que cabia atribuir-lhe. O que se propunha como idéia central era que o equilíbrio no uso do realismo é o que permitiria distinguir o socialdemocrata honesto do político desonesto ou do que busque, mesmo honestamente, valores ou fins que pareçam inaceitáveis ao primeiro ou a seus adeptos: em algum ponto haverá o "soco na mesa", cessarão as espertezas e se optará singelamente pela reafirmação das convicções e pela ação exemplar - até pela necessidade de reconhecer o papel que esta tem a cumprir, mesmo de um ponto de vista instrumental ou na busca "realista" de eficiência, para a obtenção dos fins maiores.

Temos agora o PT, de maneira bem mais dramática, posto diante dos mesmos dilemas: será realmente impossível, como sugere reiteradamente o noticiário, ser, a um tempo, inteligente, honesto e petista? No entendimento dos inimigos do PT, não há dúvida de que o partido seria inapelavelmente burro (incompetente, incapaz de ação eficiente no governo...), além de desonesto: não só os fins maiores (socialistas) e supostamente generosos e nobres do partido seriam inaceitáveis, mas, mais que isso, a retórica referida a tais fins apenas ocultaria a vileza dos fins verdadeiros. Naturalmente, isso está longe de ser consistente com o temor da eficiência na promoção dos "verdadeiros" fins petistas, de onde brotam as denúncias da "ameaça totalitária" e quejandos.

Já no entendimento de setores importantes do próprio PT, como ficou claro em 2005, a arrogância ideológica levava à idéia de que o partido podia ser "inteligente" ("realista", buscando eficácia por meios pouco virtuosos) justamente porque seria honesto, ou pela singular nobreza de seus objetivos. Se é impossível aderir à visão dos antagonistas do partido, estendendo sem mais a todos os que de alguma forma se ligaram a ele o carimbo de desonestos e ineptos ou otários, é também impossível deixar de ver os efeitos burrificadores daquela arrogância.

Mas o episódio Palocci versus caseiro mostra uma face nova da burrice, de nível talvez ainda mais reles. Após 2005, já não cabe, naturalmente, o soco na mesa, nem se trata mais da tensão entre objetivos ambiciosos ("revolucionários") e meios realistas. E o ministro Palocci, o principal personagem governamental do episódio, na verdade aparece aos olhos de muitos como a encarnação da capitulação do partido e do governo quanto aos fins ambiciosos. De todo modo, num quadro em que o que se acha em jogo são antes de mais nada as chances de saltar de alguma forma sobre os escombros da crise, talvez alcançando a reeleição, e em que o que resta como capital político é pouco mais que o apelo popular de Lula, o que vemos é o governo, na pessoa de sua segunda autoridade mais importante, confrontado miudamente com a figura modesta de um caseiro. E como se dá o confronto? Em nome da aposta numa incerta história de compra pela oposição das denúncias do caseiro, recorre-se a um ato patentemente criminoso, que não poderia senão surgir de imediato como tal diante do público - e de maneira a tornar em parte irrelevantes, ou a colocar em segundo plano, os próprios fatos cuja ocorrência o caseiro corrobora.

De acordo com informações ainda imprecisas que circulam na imprensa, haveria pesquisas recentes segundo as quais as intenções de voto em Lula não teriam sido afetadas pelo episódio, o que se deveria, na interpretação do instituto responsável por elas, à dissociação que o eleitorado faria entre a figura de Lula, de um lado, e o governo e o partido, de outro. Corretas ou não tais informações, é certo que, não obstante o escândalo e a reiteração da inépcia e da disposição pouco ética que representa, é preciso cautela, a esta altura, com respeito ao seu possível impacto eleitoral. É importante reconhecer, porém, contra certas idealizações encontradas sobretudo em meios de esquerda, que a razão principal a recomendar cautela tem a ver com as deficiências do eleitorado popular brasileiro quanto à "consciência" política e ao envolvimento nas questões políticas. O grande desafio é como fazer do realismo relativamente a este aspecto particular dos muitos traços negativos de nossa realidade algo que lideranças de grandeza moral e estatura política autêntica possam processar num esforço de construção institucional na faixa político-partidária, tal como o que se viu abortado, ao que tudo indica, na experiência petista. Infelizmente, à parte os inimigos do PT, muitos de nós temos ido de frustração em frustração, numa caminhada melancólica em que os candidatos a herói ou estadista se apequenam.

Mas cabe um alerta mais urgente. As circunstâncias do afastamento de Palocci têm ensejado um endurecimento suspeito do tom de vários comentaristas, que assumiu forma mais atrevida na indagação de um deles sobre quem, na ausência de Palocci, poderá negociar o "acordo com os mercados" que "mantém o PT no poder" - como se a ligação entre o PT no poder e o resultado de eleições democráticas, sejam quais forem as qualificações do eleitorado, fosse irrelevante. Opus-me claramente a interpretações que apontaram "golpe" no eventual encaminhamento de um processo de impeachment de Lula conduzido pelos meios legais. Mas falar de acordo de poder e sua eventual ruptura à margem do processo institucional e eleitoral é brincar com o golpismo. Oxalá não seja mais que brincadeira inconseqüente.