Título: Mantega e a realidade institucional
Autor: Lu Aiko Otta
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/04/2006, Economia & Negócios, p. B4

Nada mais conservador do que um liberal no poder. A frase, atribuída ao Visconde de Albuquerque, senador do Império, se encaixa como uma luva no novo ministro da Fazenda. Guido Mantega tem feito um esforço sensato para afastar-se de suas antigas idéias sobre a política monetária.

As novas atitudes de Mantega merecem encômios, pois mudar convicções exige desprendimento e coragem. Agora, como assinalou com propriedade, ele está "do outro lado". A transformação não é fácil, o que explica as suas ambigüidades até agora, dando a impressão de que ainda pode mudar de idéia. O mais provável é que em breve assuma plenamente o novo discurso.

Enquanto isso, os que ainda não entenderam a nova realidade institucional brasileira afirmam que Mantega vai mesmo impor mudanças.

Não agora, admitem, mas um pouco mais à frente. Calibrará a política monetária para baixar mais rapidamente os juros e desvalorizar a taxa de câmbio.

Quando saiu a Carta ao Povo Brasileiro, na campanha eleitoral de 2002, também foi assim. Petistas e simpatizantes achavam que a promessa de uma gestão macroeconômica responsável era um mero estratagema para ganhar as eleições. No poder, Lula voltaria às origens. O raciocínio era equivocado, como se viu.

Voltou-se a falar que a postura de Mantega seria mais uma prova da blindagem da economia. Não é bem assim, pois a política monetária pode ser outra se ele e Lula quiserem. Acontece que os custos políticos da mudança seriam altos e ameaçariam o projeto de reeleição.

O novo ministro da Fazendo não virou um neoliberal de uma hora para outra, se curvou à realidade. Seria diferente se Lula tivesse sido eleito em 1989, quando Mantega já o assessorava em questões econômicas. Provavelmente ter-se-ia adotado o velho catecismo da ruptura.

Como tenho defendido neste espaço e em outros escritos, ao longo dos últimos vinte anos construímos fortes instituições políticas e econômicas, que inibem o arbítrio dos governantes e o voluntarismo na política econômica. Mantega não está acuado por suposto terrorismo do mercado financeiro, como se falou, mas pela percepção de que uma guinada teria conseqüências desastrosas para o País e para o governo nos campos social, econômico e político.

Instituições, como ensina Douglass North, são as regras do jogo, formais e informais, e as crenças da sociedade. A meu ver, elas exercem um papel semelhante ao da dor no corpo humano, qual seja o de alertar para a existência de problemas. Reformas iniciadas na segunda metade dos anos 1980 nos campos fiscal e monetário tornaram essas áreas altamente transparentes e previsíveis. A Lei de Responsabilidade Fiscal e a autonomia operacional do Banco Central (na prática) são os seus efeitos mais visíveis.

Uma ordem do ministro da Fazenda ao Banco Central levaria sua diretoria a pedir demissão, pois nenhum de seus membros é militante político e todos têm reputação a preservar. Seria o primeiro sinal de alerta. Caso os novos diretores se subjugassem, o mercado detectaria a ação voluntarista e precificaria os riscos. Câmbio, juros futuros e Bolsa de Valores refletiriam instantaneamente a situação. A chamada disciplina de mercado funcionaria, impondo custos à "ousadia". As incertezas paralisariam negócios, enquanto a forte desvalorização sinalizaria a volta da inflação. No momento seguinte, a insegurança quanto ao emprego e à renda chegaria ao eleitor, que imporia a segunda penalidade ao presidente, manifestando preferências pelos candidatos da oposição.

No Brasil antigo, isso não existia. A fraqueza institucional e o correspondente arbítrio, particularmente no regime militar, permitiam "ousadias" sem conseqüências imediatas para o governo. Quem delas se beneficiava aplaudia (e ganhava), ao tempo em que seus custos podiam ser repassados posteriormente aos pobres, via inflação. Isso acabou, inclusive porque os pobres ganharam o direito de votar. Disciplina de mercado e urna são agora as barreiras ao populismo e ao voluntarismo infantil de que falou Mantega.

Pode-se até criticar eventual excesso de conservadorismo do BC, mas erra quem acha que Mantega vai mudar a política econômica mais à frente. Do mesmo modo, equivoca-se quem disser o mesmo para a hipótese de Alckmin ser o eleito. O Brasil mudou, o que nem todos percebem.