Título: Os franceses contra a França
Autor: Robert J.
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/04/2006, Internacional, p. A20

Para qualquer um que se importa com o futuro da Europa, as manifestações e os choques na França em protesto contra a nova lei trabalhista do governo são profundamente perturbadores. São os franceses contra a França - um ritual familiar que reflete o apuro mais amplo em que se encontra a Europa. Praticamente ninguém está disposto a abrir mão dos benefícios e proteções do generoso Estado de bem-estar social de hoje, mas o feroz apego a esses programas custosos e autodestrutivos impede a Europa de se preparar para um futuro que, embora possa ser deplorado, é inevitável. Na verdade, não é o futuro; é o presente.

O dilema das democracias avançadas, incluindo os Estados Unidos, é que elas prometeram mais do que podem cumprir. Seus compromissos políticos superam a capacidade de realização da economia. Em alguns casos, os compromissos foram assumidos desonestamente. Em outros, surgiram da sinceridade e basearam-se em suposições tolas. Em outros ainda, foram subjugados por novas circunstâncias. Mas o dilema é o mesmo. Repudiar antigas promessas incita a revolta pública; não repudiá-las agrava os futuros problemas do país.

Considerem a França. Suas necessidades são evidentes: assimilar uma grande e inquieta população muçulmana de imigrantes e seus filhos, pagar os custos crescentes de saúde e aposentadoria de uma sociedade que envelhece e competir na economia mundial.

Mas sua economia carece de vitalidade. De 2001 a 2005, a média de crescimento anual foi de apenas 1,6%. Por acaso e desígnio, os franceses desencorajaram o trabalho. Num estudo recente, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômicos (OCDE), em Paris, concluiu:

1) De 1994 a 2003, o desemprego entre os adultos de 25 a 54 anos ficou numa média de 9,9%; para aqueles entre 15 e 25 anos, a média foi 24%.

2) Em 2003, os trabalhadores franceses passaram em média 1.431 horas no trabalho, o terceiro índice mais baixo entre 26 países desenvolvidos. O número da Itália (1.591 horas) foi 11% mais alto; o dos EUA (1.822 horas), 27%; e o da Coréia do Sul (2.390 horas, o mais alto), 67%.

3) Entre aqueles com 60 a 64 anos, apenas um em cada seis tem emprego. Nos EUA, este índice é de um em cada dois.

Isto não pode continuar. Em 2005, a força de trabalho da França era 2,7 vezes maior que sua população de 65 anos ou mais; em 2020, segundo as projeções, ela será apenas o dobro. Uma fatia cada vez menor da população francesa - que já trabalha em jornada reduzida - pagaria uma fatia cada vez maior dos custos crescentes do país com pensões e saúde. Em 2004, a idade média de aposentadoria foi 59 anos. Os impostos médios já são cerca de 50% da renda nacional; as taxas marginais efetivas (as taxas sobre renda adicional) podem chegar a 60%. Até onde isto poderia continuar subindo sem a eliminação de incentivos trabalhistas? Cedo ou tarde, a França terá de adotar políticas que diminuam o desemprego, aumentem a jornada de trabalho, elevem as idades de aposentadoria e cortem benefícios prometidos.

Provavelmente, tarde. Os esforços para enfrentar essas questões provocam protestos. O atual ponto de combustão é uma nova lei que permite que os empregadores demitam jovens (aqueles contratados com menos de 26 anos) nos primeiros dois anos. As empresas dos EUA, é claro, podem demitir trabalhadores de todas as idades dentro dos limites dos contratos sindicais e das leis contra a discriminação. Mas na França o Código Trabalhista dá à maioria dos trabalhadores em período integral um contrato de emprego que torna as demissões custosas. Os trabalhadores podem apelar a tribunais trabalhistas. Segundo um estudo, as companhias perdem em 74% desses casos. Perversamente, todas essas proteções sufocam a criação de empregos. As companhias não contratam porque é difícil demitir. Não querem ficar sobrecarregadas com trabalhadores indesejados. Esta é uma causa do alto índice de desemprego.

A nova lei do primeiro-ministro Dominique de Villepin tenta desarmar esta lógica. O período de experiência de dois anos dá flexibilidade aos empregadores. Eles não precisam ficar com os empregados que não querem. A mudança originou-se nos distúrbios de outubro e novembro causados por jovens muçulmanos, que reclamavam de seu alto índice de desemprego. Não está claro se a lei funcionaria como previsto ou inspiraria trabalhos temporários de dois anos. Os manifestantes dizem que ela os transformaria na "geração Kleenex", a ser descartada à vontade. De qualquer modo, a mudança é pequena.

A exagerada reação política é reveladora e já aconteceu antes. Nos anos 90, os primeiros-ministros Édouard Balladur e Alain Juppé retiraram propostas polêmicas diante de protestos em massa.

Tudo isso é um mau presságio para a Europa, pois outros países estão na mesma situação da França. Os governos parecem incapazes de reconciliar os compromissos políticos com as realidades econômicas. As concessões que os governos fazem ao futuro são normalmente pequenas e lentas. A França está aumentando de 40 para 42 anos o tempo de contribuição para a qualificação total para os benefícios de aposentadoria; a mudança ocorre entre este ano e 2020. Isto sugere um desordenado processo de adaptações relutantes que não aplacam a opinião pública nem aumentam a vitalidade econômica. A Europa, hoje insegura e sem confiança, provavelmente sofrerá ainda mais desses males no futuro.