Título: PT cria nova língua para salvar imagem
Autor: Gabriel Manzano
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/04/2006, Nacional, p. A12

Mentira vira 'imprecisão terminológica' e caixa 2, sinônimo de 'recurso não contabilizado'

Vazamento, definem os dicionários Aurélio e Houaiss, é um "ato ou efeito de vazar", escoamento, vazão e vale também para a divulgação indevida de uma notícia. Na semana passada, passou a significar também algo bem mais grave: violação de sigilo. Fez dobradinha com "afastamento voluntário", que substituiu "demissão". Assim os assessores do Ministério da Fazenda puderam informar que "em virtude de um vazamento, ocorreu na segunda-feira o afastamento voluntário do ministro". Escondiam-se, por trás dessa frase vaga, quase inocente, um dos mais graves crimes praticados pelo governo contra um cidadão (a divulgação do extrato bancário do caseiro Francenildo dos Santos Costa) e a demissão do ministro Antonio Palocci, aceita pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

As duas invenções vieram enriquecer o manual de preservação da pureza ideológica com que o PT procura manter sua imagem, sua inocência, sua militância e seus objetivos. É um rico anedotário de fórmulas vagas, propositadamente fluidas, destinadas a enfeitar, esconder ou negar as feiúras da ação política. Nele o PT não erra nunca e não cabem coisas como roubo, erro, crime, traição, inveja, vingança.

Uma descoberta inesquecível desse manual foram os "recursos não contabilizados", invenção apresentada ao País em 2005 pelo então tesoureiro petista Delúbio Soares. Ele não podia dizer "roubo", que é crime de improbidade, nem "caixa 2", que é crime eleitoral.

Os "recursos não contabilizados" fizeram escola. O deputado João Magno (PT-MG) denominou-os "desvios dentro da lei" e o sucessor de Delúbio na Tesouraria do PT, Paulo Ferreira, chamou-os de "fenômeno de informalidade da política brasileira". Um pouco mais e já iria parecer elogio.

Esse palavreado oportuno ensina também que a invasão de uma fazenda ou de uma sede do INSS é "ocupação". Pobres são "despossuídos" - para não ofender - e até a fome atende nos relatórios por "insegurança alimentar". As crises em que afundou o partido são "desafios". Erros, quando inevitável mencioná-los, são "desvios". Se envolvem graves questões morais, tornam-se "deslizes éticos". Ao ceder um avião, o empresário "o disponibiliza". Fica tudo frio, técnico, sem espaço para julgamentos morais.

Outra pérola do manual é "imprecisão terminológica" - um novo equivalente para mentira. Foi a contribuição do ex-ministro Palocci ao não explicar o episódio de sua viagem em um jatinho do empresário e amigo Roberto Colnaghi. Este revelou ao País que o ministro não dissera a verdade, no depoimento à CPI dos Bingos, ao contar que o PT tinha alugado o avião. Para se explicar, o ministro lamentou ter "cometido uma imprecisão terminológica" no depoimento. "Recorri inadvertidamente à expressão 'alugou', sem me apegar à acepção restrita do termo", desculpou-se.

O PT não é o primeiro, nem o único partido no poder a valer-se de tais recursos. Como lembra a cientista política Luciana Veiga, pesquisadora do Doxa/Iuperj e professora da Universidade Federal do Paraná, já na Grécia clássica Aristóteles abordou a relação entre palavras e poder, em sua Arte da Retórica. A esquerda desde sempre diferenciou "roubo", que é praticado pela burguesia corrupta, de "expropriação", ato revolucionário do poder operário. Nos anos 40 George Orwell antecipou, em 1984, a novilíngua, a linguagem do poder do futuro. Em nome do poder, verdade podia tornar-se mentira, sempre era nunca e submissão era o verdadeiro nome da liberdade. Lenin também escreveu que "uma mentira é muitas vezes justificada pelo fim". Delúbio atualizou a obra ao discordar da idéia de obrigar um partido a prestar contas à sociedade. "Transparência assim é burrice", ensinou o professor goiano.

A estratégia que se adota, observa Luciana Veiga, é "obscurecer qualquer associação desse ato (o roubo) com uma atitude premeditada". É tudo sempre casual, uma brevíssima falha corrigida com imediata volta aos trilhos. Por isso, diz a professora, Palocci "admite ter viajado de avião, mas argumenta que não sabia que ele estava sendo emprestado ao partido". Se não sabia, não cometeu crime. Argumento semelhante ao apresentado pelo presidente Lula, que por duas vezes declarou-se "traído" - quando veio à luz o mensalão e quando soube da violação de sigilo do caseiro. "O que está por trás desse discurso", observa Luciana, "é mostrar que ações do partido devem ser julgadas no máximo como erros ou deslizes. Atos desprovidos de má-fé, nunca delitos procedentes da perversidade."