Título: O inverso do desejo
Autor: Dora Kramer
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/04/2006, Nacional, p. A6

José Serra sai da Prefeitura de São Paulo para entrar na história da mais confusa escolha de candidato jamais vista dentro do PSDB. Tão cheia de idiossincrasias e suspeições que, a despeito da decisão fechada em torno do nome de Geraldo Alckmin para concorrer à Presidência da República, ainda vigoram temores (melhor seria dizer rumores, pois só se manifestam em voz baixa) de que possa haver uma troca de candidatos presidenciais na convenção de junho, se Alckmin não disser a que veio nas pesquisas.

No cenário de hoje, trata-se de um receio infundado, pois, embora a hipótese freqüente corações, a objetividade das mentes consideram-na fora de questão. Mais não fosse, porque em 12 anos de poder paulista o tucanato não conseguiu produzir um só candidato competitivo e o establishment local treme de horror só de pensar em entregar seu rico Estado ao PT.

Portanto, lá se foi José Serra outra vez instado contra sua vontade primeira a prestar um serviço no qual pode ser bem-sucedido, mas para o qual não tinha dirigido seu desejo. Este era mesmo a candidatura à Presidência da República. Para ele se preparou e, de olho nele, resistiu à candidatura a prefeito em 2004.

O motivo foi semelhante: para o PSDB se firmar como líder da oposição, era questão de vida ou morte impor uma grande derrota ao PT e o tucanato não tinha um só candidato que somasse meio para enfrentar o PT.

Serra não queria porque imaginava, com isso, perder a chance da Presidência em 2006. Acabou perdendo. Menos por estar "amarrado" à cadeira de prefeito e mais pelas manhas sem artes de seu partido, pela agressiva obstinação de Geraldo Alckmin e por um erro de cálculo no tempo de entrar na luta e na ofensiva da ocupação de espaço.

Esperou que o cardinalato segurasse as divergências internas e imaginou poder cumprir o roteiro que seguiu agora para assumir a candidatura ao governo de São Paulo: usar todo o tempo disponível, construir a unidade, dissolver as resistências dos outros postulantes, fazer-se necessário a um projeto coletivo e sobretudo acostumar o eleitorado à sua saída da Prefeitura um ano e meio depois de eleito.

A despeito das mudanças de planos, soaria exagerado dizer que as coisas deram errado para José Serra. Afinal, a posição de predileto na conquista do maior Estado do País não configura exatamente um projeto pífio. E se perder?

Foi sobre esse risco que ele falou no anúncio da candidatura, refletindo uma tormenta interna não compartilhada por seus aliados, sejam eles tucanos, pefelistas ou até pemedebistas. Guilherme Afif Domingos, um dos pré-candidatos ao governo a abrir mão para Serra, resume numa frase o espírito do entorno: "Alckmin é uma esperança, mas Serra é uma certeza."

Digamos que Afif esteja um tanto ao céu demais no tocante à cautela de José Serra quando as circunstâncias se sobrepõem à sua vontade. Não foi essa a primeira vez que a contrariedade se impôs como projeto.

No início do governo Fernando Henrique Cardoso, Serra não queria o Ministério do Planejamento, preferia o comando da economia. Perdeu a batalha do começo ao fim, embora no frigir FH tenha sido obrigado a reconhecer que Serra estava certo - principalmente quanto à política cambial - em alguns de seus combates.

Depois, resistiu o quanto pôde a assumir o Ministério da Saúde, idéia antiga do então presidente, que achava que Serra deveria largar a "mania de economista" para se dedicar à área social se quisesse ter futuro alto na política. Além de desgostoso com o governo, José Serra na época desconfiava da sinceridade de propósitos do amigo presidente. Imaginava que seria tragado pelas dificuldades ancestrais da saúde pública no Brasil.

Ao fim de uma gestão reconhecidamente bem-sucedida e levada por ele com a consciência de que, ante a dificuldade de endireitar o setor, deveria ao menos escolher pontos de visibilidade para criar uma percepção positiva quanto à chance de melhoria, acreditou-se (com o apoio de FH) credenciado à candidatura presidencial.

Apostou no seu desejo, foi algo impositivo, não se incomodou em desagregar, deu asas ao temperamento de quem faz as coisas (boas ou más) sem olhar a quem, mirando apenas no resultado.

Embora tenha chegado ao segundo turno carregando nas costas o desgaste de oito anos de governo tucano e uma campanha cheia de erros, pode-se dizer que as coisas então deram errado. A derrota não era o destino desejado.

Depois, em 2004, seu anseio pela Presidência em 2006 o fez vacilar ante a candidatura à Prefeitura. Temia perder, arruinar as possibilidades do anseio maior ou, então, ganhar e se ver ganhador do premio menor.

Jurou que não deixaria a Prefeitura porque acreditou mesmo que seria impossível. Até se ver diante da evolução das pesquisas. Animou-se e se convenceu de que se elegeria presidente e para mudar o Brasil "em quatro anos". Adversário do princípio da reeleição, afirmava ainda em meio à confusão da escolha: "Não preciso de mais."