Título: Adeus ao grande irmão
Autor: Gaudêncio Torquato
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/04/2006, Espaço Aberto, p. A2

Desta feita, o presidente das metáforas acertou em cheio. Antonio Palocci deixa o governo como o "grande irmão". Foi assim que Lula se referiu ao ex-todo-poderoso ministro da Fazenda no velório de despedida no Palácio do Planalto. A consangüinidade atestada por Luiz Inácio não resiste à observação de que o DNA de Palocci, pelo exame feito no laboratório político, está mais próximo do perfil biogenético do Big Brother de George Orwell, haja vista a intenção cavilosa do ex-ministro de passear os olhos pelas entranhas de um humilde caseiro com o fim de desmoralizá-lo. Mas o olhar totalitário e aterrador do "grande irmão" perdeu para o olhar democrático e destemido do franzino piauiense. Para fechar o paradoxo, o perfil mais cultuado pelas elites econômicas não resistiu ao verbo simples e direto de um homem do povo. O golpe das elites contra Lula vai para o beleléu.

A questão é irresistível: por que o mais forte auxiliar do presidente da República, fiador da política econômica bem-sucedida, cai como fruta podre? A resposta curta e objetiva: o exercício da democracia abriga o jogo dos contrários, a força da verdade contra a fragilidade da mentira. Torna-se, porém, cada vez mais evidente que a série de crises que afetam o atual governo tem uma causa central: uma visão equivocada do poder, do Estado, da política e da sociedade. A imagem ciclotímica do governo Lula, ora subindo aos céus, ora descendo aos infernos, deriva dos equívocos que balizam o pensamento da vanguarda petista, a partir do presidente Lula.

Vejamos as distorções. Se o poder é a possibilidade de alguém impor a vontade sobre a conduta de outras pessoas, conforme prega Max Weber, chega-se à conclusão de que tal imposição ocorre de maneira torta no governo petista. A distorção está na aplicação errática das três fontes do poder que Galbraith identifica: a personalidade, a propriedade e a organização. Lula superdimensionou o simbolismo que representa. Crê que sua história, a origem humilde, a extensão da identidade dos pobres que procura encarnar são capazes de romper barreiras e administrar pressões. O poder carismático é seu vetor de peso. Mas carisma não é uma fonte inesgotável. Quando o código de personalidade é usado para acobertar desvios e se distanciar do cotidiano da política - como fosse possível ao mandatário governar com as delícias do Olimpo sem experimentar as agruras da terra -, a força simbólica entra em processo de corrosão. Ademais, há identidades mais voltadas para a esfera litúrgica do poder do que para as (chatas) rotinas da administração pública. Temístocles, o general ateniense, convidado numa festa a tocar cítara, disse: "Não sei tocar música, mas posso fazer de uma pequena vila uma grande cidade." Há governantes capazes de engrandecer o Estado, mesmo que não saibam solfejar uma nota. Lula gosta mesmo é de tocar apito. Haja verbo.

O fator propriedade - os recursos para o ator assentar a base do edifício do poder - foi e é usado de maneira inadequada. O Estado é considerado pelo lulismo-petismo a mais adequada ferramenta para maximizar um projeto partidário de poder. Pensando assim, assume a condição de dono do aparelho estatal, inchando as estruturas com quadros inexperientes e despreparados e usando a máquina. O Estado-nosso é concebido para realizar apenas aquilo que considera útil. Seu modus operandi é centrífugo e exclusivista. Mecanismos de consulta social, como o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, são meros adornos retóricos para enfeitar a malha autoritária. Ao reunir incompetência, inexperiência, exclusivismo e arrogância, o governo construiu uma das mais esburacadas malhas administrativas dos governos pós-ditadura. O arquipélago de Lula abriga ilhas por todos os lados.

O fator organização também é responsável pela barafunda em que se meteu o governo. Na crença de que podia reinar absoluto, o petismo-lulismo imaginou que podia cooptar políticos no varejão. Deu no que deu. Mensalão para uns, noves fora para outros. Chancelas de cargos para apaniguados e cancelas fechadas para adversários. O PT ignorou a índole da política. Adotou a fórmula egocêntrica da repartição: "Três pra nós, um pra vocês e mais dois pra nós." A argamassa frouxa fez ruir o edifício. Era natural aparecer alguém - qualquer Roberto Jefferson - para abrir o bico. As pedras rolaram uma a uma. A ruína se completa com a má leitura que os petistas fazem da sociedade. Pensavam que bastaria a Lula usar o carisma para livrar qualquer um. Esqueceram que a taxa de racionalidade se expande no meio social. A emoção, caprichada na campanha de Lula, hoje causa pejo. Basta ver o "movimento corporal" emotivo da pizzaiola deputada Ângela Guadagnin. Da mesma forma, não atentaram para uma mídia de forte penetração nacional.

Neste ponto, emerge a resposta para a questão inicial. Palocci caiu porque é fruta podre de uma árvore que envelhece e se desfaz antes de completar o ciclo de vida. Foi embora do governo por obra e graça do lema do petista: "Entre nós, tudo é permitido, mesmo o que for proibido." O "irmão de Lula" vai chiar para fugir dessa tal República de Ribeirão Preto. Não causará surpresa, na ótica petista, se um olho do presidente Luiz Inácio for flagrado chorando de tristeza, enquanto o outro sorri de alegria.