Título: Descoberto elo da evolução humana
Autor: Simone Iwasso
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/04/2006, Vida&, p. A18

Ossos de 4,2 milhões de anos encontrados na Etiópia preenchem lacuna entre duas espécies de hominídeos

Do nordeste da Etiópia, mesmo lugar de onde foram desenterrados os mais importantes fósseis de ancestrais humanos, acabou de sair mais uma peça para montar o quebra-cabeça da evolução do homem. Uma equipe internacional de cientistas descobriu ossos e dentes de 4,2 milhões de anos que preenchem o vazio até então existente entre o desenvolvimento de dois gêneros de hominídeos. É a primeira vez que se consegue montar essa seqüência evolutiva com todos os fósseis encontrados em uma mesma região.

A descoberta, que levou cinco anos para ser analisada e foi publicada na edição de hoje da revista Nature, diz respeito à espécie Australopithecus anamensis, que acredita-se ser o primeiro dos australopitecos, gênero do qual se originou o Homo sapiens.

Ele estaria entre o Ardipithecus ramidus, um dos primeiros hominídeos primitivos, provavelmente descendente do ancestral comum do homem e do macaco, e o Australopithecus afarensis, que já andava em pé, tinha braços longos e pernas curtas. É dessa segunda espécie o mais conhecido vestígio de hominídeo, batizado de Lucy - um esqueleto completo de 1 metro de altura e cerca de 30 quilos, de 3,9 milhões de anos, encontrado há cerca de 30 anos.

"A descoberta nos permite saber de onde Lucy veio e nos dá mais referências sobre essa espécie, anterior e mais primitiva, a primeira dos australopitecos. Trata-se de mais um dado para entender a evolução", explicou ao Estado, por telefone, o paleontólogo Tim White, da Universidade da Califórnia, em Berkeley.

Ele é um dos responsáveis pela longa pesquisa que une cientistas dos Estados Unidos, Etiópia, França e Japão e já encontrou outras seis espécies de hominídeos na região de Middle Awash, a aproximadamente 230 quilômetros de Adis Abeba, a capital da Etiópia.

Os paleontólogos já haviam encontrado fósseis do Australopithecus anamensis no Quênia, na década de 90. Mas, por serem muito poucos, havia dúvidas se pertenciam mesmo a uma espécie diferente. Agora, com a descoberta dos fósseis na mesma região onde outros hominídeos foram localizados, o pesquisador diz que acabaram-se as dúvida. "Uma espécie evoluiu para outra. É a evidência da evolução em um mesmo lugar. É como ter os quadros de um filme caseiro, mas que abarca milhões de anos", observou.

De acordo com o antropólogo Walter Neves, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), havia muito pouco material sobre essa espécie, o que deixava um questionamento para os cientistas. "Agora pode-se montar a seqüência cronológica e entender mais sobre esses hominídeos."

DENTES GRANDES Segundo ele, uma das diferenças entre as duas fases dos hominídeos está nos dentes do australopiteco, maiores e mais próprios para mastigar alimentos duros, indicando que ele se alimentava de raízes e carne. Seus ancestrais tinham dentes pequenos, o que restringia o tipo de comida.

Além disso, os vestígios indicam que essa espécie já era bípede e tinha um cérebro pequeno - os cientistas ainda divergem sobre se o Ardipithecus ramidus, a espécie que seria anterior, andava em pé ou não. Os fósseis eram de oito indivíduos diferentes e incluem o maior dente canino de um hominídeo já encontrado, além de ossos do fêmur, mãos e pés.

Na mesma escavação, os cientistas acharam centenas de ossos de porcos, pássaros, macacos, hienas e gatos. Isso ajudará a entender melhor o ambiente em que eles viviam. "Num único vale da Etiópia, temos a melhor janela do mundo da evolução humana. Todas essas descobertas comprovam que nós evoluímos", afirma White.

Mesmo assim, ainda resta uma grande pergunta sem resposta para os cientistas. Com a linha evolutiva dos australopitecos formada, falta saber de qual deles se originou o Homo sapiens. "Essa é ainda nossa grande dúvida. Sabemos que há cerca de 2,6 milhões de anos o homem começou a usar materiais para fazer ferramentas e a se desenvolver. Ainda não estamos certos de qual deles foi", completa o paleontólogo.

O que se sabe, por meio de estudos, fósseis e análises de DNA, é que o Homo sapiens se desenvolveu na África há 200 mil ou 150 mil anos. E que seria descendente de uma das várias espécies de hominídeos que viveram no continente e depois migraram para outras regiões do planeta.