Título: Pleito expõe a era do impasse
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Fonte: O Estado de São Paulo, 13/04/2006, Internacional, p. A17

Se existe um setor global que precise de reestruturação é o negócio das pesquisas de boca-de-urna. Na tarde de segunda-feira, as primeiras projeções puseram Romano Prodi no caminho de uma confortável vitória sobre Silvio Berlusconi. À noite, essa margem encolhera ao extremo: um décimo de ponto porcentual separava os dois. Duas semanas antes, pesquisas de boca-de-urna em Israel deram 33 cadeiras ao partido Kadima, número que caiu para 28 na manhã seguinte. E não nos esqueçamos da noite de 2 de novembro de 2004, quando os gurus da pesquisa consagraram o presidente John Kerry.

E então os italianos acordaram para encontrar um resultado nebuloso, incerto, com nada da clareza prometida na noite anterior. Mesmo assim, para os italianos progressistas, isto foi apenas uma mancha no copo de champanhe. Havia algo a comemorar: a esperada saída de Silvio Berlusconi. "Era tão humilhante vê-lo na TV, agindo como um ditador latino-americano", disse Pietro Corsi, editor da versão italiana do New York Review of Books.

Corsi, como muitos outros, passara a menosprezar tudo o que o primeiro-ministro representava. Rejeitava sua aliança com racistas e ex-fascistas; seu empreguismo e sua grosseria, que o levava a xingar os oponentes com palavrões; sua vaidade exacerbada, da cirurgia cosmética ao tratamento capilar e às comparações de si mesmo com Napoleão e Jesus. Mas havia duas objeções mais sérias. A primeira era contra sua lealdade ao governo americano mais direitista de que se tem memória. Ele seguira a Casa Branca numa guerra impopular.

A segunda era contra sua personificação de uma cultura de corrupção, seu arrogante desprezo da legalidade, mais bem ilustrado por suas repetidas tentativas de reescrever as regras para não ser processado. A idéia de um magnata da mídia dono de 90% das transmissões de TV - o homem mais rico da Itália - chefiar o governo já era, em si, uma corrosão da vida pública. Sua partida, se for realmente uma partida, faz instantaneamente do reino cívico italiano um lugar mais limpo.

Para muitos, a eleição foi um referendo sobre Berlusconi, sua questão central inteiramente exclusiva da Itália. Ainda assim, ela se encaixa em pelo menos dois padrões mais amplos. Primeiro, os italianos agora se tornam a última democracia madura a ser revelada como uma nação dividida ao meio. Os EUA abriram a lista com o impasse de 2000 na Flórida, enquanto a eleição de 2004 dependeu de apenas 60 mil votos do Estado de Ohio. Em setembro, os alemães produziram seu próprio resultado apertado. E agora um resultado italiano separa a esquerda da direita por apenas 25 mil votos.

Isto pode ser apenas uma artimanha aritmética ou então sugerir que estas sociedades de fato estão divididas ao meio. Os abismos culturais que separam os Estados "vermelhos" e "azuis" nos EUA são bem conhecidos, mas a Itália também é polarizada. Norte e sul, religiosos e seculares, ricos e pobres, direita e esquerda - todas essas divisões são profunda e historicamente enraizadas no país. Este é um lugar onde os católicos ainda brigam com os comunistas pela alma da nação, onde alguns no norte rico acreditam ter mais em comum com os alemães sulistas que com aqueles italianos que eles chamam de marocchini - "marroquinos" - do sul e da Sicília.

A tendência mais preocupante é a paralisia que parece envolver as três maiores nações da Europa continental. Na Alemanha, França e Itália a classe política (estimulada pelo empresariado) convenceu-se de que é necessário urgentemente um remédio específico para tratar de suas economias doentes. Estas precisam, conforme as elites concluíram há tempos, submeter-se à reestruturação radical, à desregulamentação de seus setores, à liberalização de seus mercados de trabalho. Há uma variedade de nomes para o remédio - thatcherismo, blairismo, neoliberalismo, o modelo anglo-saxão -, mas líderes em Paris, Berlim e Roma não têm nenhuma dúvida de que ele precisa ser ministrado para que esses três leões europeus com artrite não sejam despedaçados na selva globalizada pela Índia e pela China.

O problema é que os cidadãos da troika européia não querem submeter-se ao tratamento. Eles se recusam a endossá-lo nas urnas, como fizeram na Alemanha, transformando a vantagem inicial de Angela Merkel sobre Gerhard Schroeder na mais apertada das vitórias. Ou então saem às ruas, como acabam de fazer na França, forçando Dominique de Villepin a derrubar seu plano relativamente modesto de tornar os menores de 26 anos mais sujeitos à demissão e, portanto, mais atraentes para os empregadores. De um modo ou de outro, eles não permitirão que seus líderes imponham as reformas thatcheristas que os líderes dizem ser essenciais.

Mas, curiosamente, esses eleitores tampouco reúnem-se em torno de uma alternativa clara da esquerda - graças em parte à incapacidade dos progressistas ao redor do mundo de articular uma. Eles sabem o que rejeitam, mas ainda não encontraram um programa para apoiar. O resultado é um impasse paralisante, refletido nas urnas. A Itália é um exemplo típico. Poucos negam que há um problema. O crescimento econômico no ano passado foi nulo; a dívida pública é maior que o PIB - a Itália gasta US$ 78 bilhões por ano só com pagamentos de juros. Berlusconi, que prometeu fazer para a Itália o mesmo milagre financeiro que realizou para si, comandou um declínio em quase todos os indicadores importantes, da produtividade à competitividade.

A perspectiva a longo prazo é ainda pior. As grandes indústrias da Itália são as têxteis, de calçados e de móveis, áreas nas quais a China e a Índia podem facilmente prevalecer no preço. O país tem uma população que envelhece e diminui: a taxa de natalidade está caindo e 28% dos italianos são pensionistas que vivem mais tempo e contam com menos trabalhadores para pagar sua aposentadoria. Todo mundo sabe que algo precisa mudar se o país não quiser passar o século 21 afundando.

Mas não foi oferecido ao eleitorado um curso de ação claro. Berlusconi prometeu um aumento da pensão pública. Por outro lado, foi o social-democrata Prodi que pediu um corte na quantia que os empregadores pagam para a previdência dos trabalhadores. Isso aconteceu em parte porque ambos precisavam manter grandes coalizões. Mas também porque a direita não se atreveu a oferecer um programa thatcherista pleno, temendo rejeição. Assim, os partidos limitaram suas apostas - e os eleitores também.

Contudo, se a direita deixou de oferecer um programa claro, a esquerda não ficou atrás. Ela não teve uma visão própria, que pudesse fazer frente à ideologia neoliberal das privatizações. Isto dificilmente é culpa da Itália. A esquerda do mundo todo, com a confiança destruída desde 1989, carece de uma visão coerente de economia política, um sistema que possa propor aos eleitores. "Freqüentemente a alternativa ao neoliberalismo é apenas o conservadorismo", diz Charles Grant, diretor do Centro para a Reforma Européia. Então sabemos, pela Alemanha, França e agora Itália, que a resposta thatcherista à globalização é temida pelos eleitores - mas eles não têm nada em que votar como alternativa. E não é preciso fazer pesquisas para saber que a era do impasse continuará até que eles tenham uma alternativa.