Título: Juristas divergem sobre base legal do processo
Autor: Gilse Guedes
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/04/2006, Nacional, p. A4

Presidente cometeu erros sérios, dizem eles, mas definir sua culpa é uma questão polêmica

Em pelo menos três episódios o presidente Luiz Inácio Lula da Silva cometeu, nos últimos dois anos, transgressões que, segundo os juristas, poderiam ser enquadradas na Lei 1.079 - a que define crimes de responsabilidade das autoridades e pune os infratores com a perda do cargo. Daí a dizer, porém, que ele corre risco de impeachment vai uma distância considerável, alertam especialistas em direito constitucional. Primeiro, porque a natureza política do assunto torna um impeachment improvável - basta lembrar que a Câmara precisaria aprovar por dois terços dos votos a admissibilidade do pedido. Segundo, porque não há unanimidade, no plano jurídico, quanto à gravidade da culpa do presidente nos vários casos.

Os três episódios que incriminam o presidente são a confissão de caixa 2 feita por Duda Mendonça à CPI dos Correios - que tornaria ilegítima sua vitória em outubro de 2002 -, a admissão de Lula, numa entrevista em Paris, de que o PT praticou "sistematicamente" o uso de recursos não contabilizados e, por fim, seu comportamento no episódio que culminou com a queda do ex-ministro Antonio Palocci, no mês passado.

A Lei 1.079, de 1950, considera crime "servir-se das autoridades sob sua subordinação para praticar abuso do poder" (art. 7.º, alínea 5) e "não tornar efetiva a responsabilidade dos subordinados" (art. 9.º, alínea 3), além de "proceder de modo incompatível" com a honra e decoro do cargo" (9.º, alínea 7). Lula poderia ser cobrado por tais atos se acusado de eleger-se com caixa 2. Ou por deixar que subordinados montassem o esquema do mensalão - e aind a ao elogiar Palocci já sabendo que ele violara o sigilo bancário do caseiro Francenildo dos Santos Costa, o Nildo.

Para o jurista Saulo Ramos, que foi ministro da Justiça no governo Sarney, os dois primeiros episódios "são delitos gravíssimos", mas não serviriam para justificar o impeachment, "porque cometidos pelo candidato e por seu partido antes da posse, e não pela autoridade no exercício do cargo". Mas o terceiro episódio - o comportamento de Lula no caso Palocci - "enquadra-se com perfeição", pois houve "claramente a prática de abuso de poder e tipifica crime contra a probidade da administração por não tornar o presidente efetiva a responsabilidade de seus subordinados".

O constitucionalista Carlos Ari Sundfeld entende que emerge das investigações "a forte suspeita de que em torno do candidato e do presidente pode ter-se formado um sindicato do crime para fins políticos". Se se confirmar que, por ação ou omissão, o presidente ajudou a montar esse sindicato, "terá praticado crime contra a probidade na administração, procedendo de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro".

Para Ives Gandra Martins, há precedentes para uma iniciativa contra Lula. "Tecnicamente há mais sinalizações em relação a comportamentos duvidosos do que no próprio governo Collor." Mas, como o processo de impeachment é político, "é improvável que as oposições o levem adiante".

O titular de direito do Estado na PUC-SP, Celso Campilongo, afirma que "nos três casos não haveria dificuldades para enquadrar o presidente", mas o texto da lei "tem uma terminologia muito vaga, concebida para que o julgamento não seja judicial, mas político". Por exemplo, a solidariedade de Lula a Palocci: "Um jurista poderá entender que o presidente, ao aceitar a demissão, fez o que devia e ao evitar criticá-lo preservou a dignidade do cargo."