Título: Um libelo arrasador
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/04/2006, Notas e Informações, p. A3

Não foi a oposição ávida por voltar ao poder a qualquer preço. Não foram as elites conservadoras que, apesar de aplaudir a política econômica, jamais se conformaram com a eleição de um retirante nordestino e operário para conduzir o País e fazer as reformas sociais que elas sempre bloquearam. Não foi, enfim, a grande mídia acumpliciada desde a primeira hora com uma e outras. Quem acaba de identificar uma "sofisticada operação criminosa" posta em marcha para "garantir a permanência do Partido dos Trabalhadores (PT) no poder" foi uma autoridade sobre a qual não paira a sombra de suspeitas, até porque deve ao presidente Lula a sua nomeação para procurador-geral da República.

É ele, Antonio Fernando Souza, discreto integrante do Ministério Público Federal há 30 dos seus 57 anos, quem fala textualmente da "quadrilha" chefiada pelo então ministro José Dirceu, cujo "núcleo principal" era formado pelos seus companheiros José Genoino, à época presidente do PT, Delúbio Soares, tesoureiro, e Sílvio Pereira, secretário da agremiação. E foi ele, em suma, quem denunciou ao Supremo Tribunal Federal (STF) 40 - o número não poderia ser mais emblemático - envolvidos com o mensalão, por delitos como lavagem de dinheiro, formação de quadrilha, corrupção ativa e passiva, peculato, crime contra o sistema financeiro e falsidade ideológica.

A grande maioria dos nomes freqüentou o noticiário político-policial desde que o então deputado Roberto Jefferson acusou o PT e o ministro José Dirceu de comandar um esquema de suborno de parlamentares a que chamou mensalão, aludindo à periodicidade dos pagamentos. "Todas as imputações feitas pelo ex-deputado", sustenta o procurador, "ficaram comprovadas." No seu libelo, convivem, além dos citados, os ex-ministros Luiz Gushiken (ainda no Planalto) e Anderson Adauto, 13 políticos mensaleiros (entre eles 5 absolvidos pela Câmara), dirigentes do Banco Rural, Duda Mendonça e - naturalmente - Marcos Valério, "um verdadeiro profissional do crime". E essa é apenas a primeira parte de um inquérito do qual não se sabe aonde poderá chegar.

O que torna absolutamente críveis as conclusões do trabalho, além da manifesta isenção do seu autor, é a consistência da análise da engrenagem por trás dos crimes perpetrados, com o entrelaçamento dos ramos político-partidário, publicitário e financeiro da quadrilha. Mas a denúncia convence acima de tudo por sua irrepreensível objetividade. É o que a distingue do relatório final da CPI dos Correios. Este, embora também tenha comprovado a prática do mensalão, foi uma conta de chegar, como costumam ser os resultados das investigações parlamentares, produto ao mesmo tempo de fatos apurados e pressões, ou negociações, políticas.

Nada remotamente parecido com isso influenciou o inquérito dirigido pelo procurador-geral. A independência e a seriedade com que agiu transparecem na simplicidade do seu texto, desprovido dos contorcionismos verbais ou do estilo barroco presentes no documento da CPI. Com sujeitos, verbos e predicados em ordem direta, Antonio Fernando Souza dispensa eufemismos e chama as coisas pelos nomes - a começar do mais arrasador deles, "quadrilha". Está lá: "compra (pelo PT) de suporte político de outros partidos" e "financiamento irregular de campanhas".

O grande ausente dessa primeira peça é o presidente da República - e não há por que desconfiar de que o procurador tenha querido poupá-lo. Se não o citou foi por não ter encontrado, ao menos por ora, evidências positivas de sua participação na "sofisticada operação criminosa". Isso não impede a mais óbvia de todas as inferências: o próprio fato de Lula ser o beneficiário por excelência da corrupção em escala inédita promovida pelo PT lhe confere necessariamente a responsabilidade objetiva pelos malfeitos - dos quais, de resto, impossível imaginar que não tivesse conhecimento. O que leva ao que parece ser a única passagem contestável da denúncia.

Para o procurador, os delitos que descreve tiveram início "com a vitória eleitoral de 2002 do Partido dos Trabalhadores". Na realidade, com a eleição de Lula o PT transferiu para a política nacional e generalizou para além de qualquer limite práticas de corrupção engendradas e desenvolvidas nos seus governos municipais. Foi em São José dos Campos, Santo André e Ribeirão Preto, por exemplo, que o partido aprendeu a recorrer ao crime para garantir a sua permanência no poder.