Título: A estiagem cambial na agricultura
Autor: Roberto Macedo
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/04/2006, Espaço Aberto, p. A2

O governo de Mato Grosso realizou segunda-feira, em São Paulo, evento para chamar a atenção para a séria crise dos agronegócios em geral e nesse Estado, em particular. Há problemas microeconômicos (setoriais e regionais), como a ferrugem da soja, a febre aftosa, que prejudicou exportações de carne bovina, e a ameaça da gripe aviária asiática, com idêntico efeito na avicultura, entre outros. Há também a guerrilha do MST a assustar gente que trabalha, prejudicar empreendimentos e destruir riquezas.

Quem está no ramo sabe que muitas vezes é para se molhar muito, e também enfrentar estiagens, pragas de todo o tipo e oscilações de preços de mercado. Assim, a microeconomia do setor envolve riscos consideráveis, que a agricultura moderna contorna, entre outras formas, com avanços tecnológicos, irrigação, fertilizantes, defensivos agrícolas e operações financeiras nos mercados futuros de seus produtos, onde é possível buscar proteção contra oscilações de preços.

Mas hoje predomina um problema macroeconômico, o de um dos preços que afetam a economia como um todo e particularmente esse setor, a taxa de câmbio. Ela perdeu cerca de 30% do seu valor em reais por dólar desde o final de 2004 até aqui. Imagine-se o leitor, por exemplo, como produtor de soja, vendendo-a em dólares com essa perda ao convertê-los em reais, que nesse período também perderam cerca de 13% por conta da inflação interna. E mais: com tais quedas essa situação foi agravada, pois os custos de produção, alguns dos quais dolarizados e em alta, como o óleo diesel e agroquímicos derivados do petróleo, ocorreram na ocasião do plantio, a uma taxa de câmbio superior à do momento da colheita, desequilibrando, assim, os custos em relação aos preços, que deveriam cobri-los e gerar algum lucro.

O cidadão comum vê a crise como mais uma típica do setor, este sempre a clamar por pacotes de ajuda do governo, os quais surgem na roupagem usual de renegociação de dívidas, absorvendo recursos do Tesouro. Estes, via financiamento desses pacotes e a juros mais favoráveis que os de mercado, e, por vezes, também por conta da inadimplência de parte de seus beneficiários. Assim, a imagem desses pacotes não é nada boa.

Entretanto, trata-se agora de uma nova situação, em que o remédio adequado transcende os dos pacotes triviais, pois a praga mais devastadora está na taxa de câmbio, que mantém o setor num prolongado período de estiagem cambial, por se revelar insuficiente para irrigar adequadamente as finanças de quem produz.

É uma crise delineada fora das porteiras das fazendas e do âmbito dos mercados de produtos agrícolas. Seu foco está em Brasília, no governo e na sua equivocada política econômica, de tal forma mal-estruturada que leva a um valor muito baixo para o câmbio, sem se preocupar com os danos que isso causa à economia. Em particular, a esse setor em que o Brasil demonstra, dentro dessas porteiras, ser competitivo em termos mundiais, a ponto de no passado superar as dificuldades de levar seus produtos aos mercados, sintetizadas no chamado custo Brasil (juros elevados, alta carga tributária e infra-estrutura inadequada). Para agravá-lo veio o dólar barato e não cabe iludir-se com o ainda presente avanço das exportações agrícolas, pois é produção colhida, e a perspectiva é de redução das próximas safras.

A queda da taxa de câmbio veio com a recuperação das contas externas brasileiras, que passaram a gerar grandes superávits comerciais e até no conjunto das transações correntes, que além das comerciais inclui a tradicionalmente deficitária conta de serviços, inclusive financeiros. Essa queda foi fortemente agravada pela política de juros elevados que atrai dólares para o País, praticada pelo Banco Central, que cuida onipotentemente da inflação, enquanto o governo federal joga contra, expandindo gastos, carga tributária, crédito ao consumidor e rendimentos nominais, como no recente e forte aumento do salário mínimo.

Para sair dessa encrenca não se pode atuar, como muitos querem, apenas sobre a taxa de juros, reduzindo-a. Impõe-se uma política econômica digna do nome, que coerentemente combine objetivos, metas e instrumentos, partindo do que está mais frouxo, os gastos públicos, e daí para conter a carga tributária e o endividamento público, dando assim à redução de juros um caráter sustentável. Com juros menores a economia seria liberada para crescer mais, ampliando as importações, a demanda de dólares e contribuindo para sua valorização, esta impulsionada também pelo efeito direto de juros menores no mercado de câmbio, reduzindo aí a oferta de dólares.

Em meados dos anos 1960 fui exposto a um debate econômico então dominado pela tese de que países em desenvolvimento não deveriam apostar na exportação de produtos primários, em face da instabilidade de sua produção e de seus mercados, e também porque, relativamente ao aumento de renda dos consumidores, internacionalmente sua demanda crescia bem menos que a dos produtos industrializados. Hoje, essa tese perdeu muito espaço, pois em muitos países, inclusive desenvolvidos, a agricultura moderna se manteve dinâmica por conta de desenvolvimentos como os já apontados, que conseguiram aproximá-la do sistema industrial de produção, como fica claro na produção avícola e, particularmente no Brasil, de álcool, cuja demanda se expande à velocidade de muitos produtos industriais.

Desse debate veio também a tradição de chamar os países ricos de centro e os pobres, de periferia, com estes girando em torno daqueles. Se os líderes desse debate voltassem à cena se surpreenderiam ao ver a agricultura brasileira padecer desse problema cambial gerado no próprio centro de um país periférico.